Em entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, que abre o livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma” (Editora Boitempo, 2013), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz um balanço dos 10 anos de administração federal liderada pelo PT.
Os avanços obtidos em 10 anos de governo petista “são analisados neste livro e interpretados por Lula nesta entrevista, realizada na sede do Instituto Lula, em São Paulo, em 14 de fevereiro de 2013. Traz contribuições para compreender uma década fundamental na história brasileira. Ajuda-nos a interpretar, pela visão de quem foi e continuará sendo uma das figuras mais destacadas da política mundial no século XXI, conjuntura de excepcional riqueza na luta pela construção de uma nação mais democrática e justa”.
Leia aqui a íntegra da entrevista disponibilizada pelo site Carta Maior:
O ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva faz um balanço dos 10 anos de administração federal liderada pelo
PT nesta entrevista concedida a Emir Sader e Pablo Gentili, disponibilizada
aqui pela Carta Maior e que abre o livro '10 anos de governos pós-neoliberais
no Brasil: Lula e Dilma' (Editora Boitempo, 2013). Leia a íntegra:
Um livro sobre os 10 anos
dos governos que transformaram profundamente o Brasil não poderia deixar de dar
a palavra a seu principal protagonista, aquele sem o qual esse processo não
teria sido possível e, menos ainda, ter logrado tamanho êxito. Luiz Inácio Lula
da Silva é um político prático, intuitivo, que busca a resolução concreta dos
problemas. Foi em boa medida graças a essa capacidade que se desenvolveu no
país um complexo processo de articulação política que tornou viável a
prioridade do social e a promoção de políticas igualitárias, a soberania
externa e a recuperação do papel ativo do Estado na construção dos direitos
cidadãos.
Esses avanços são analisados
neste livro e interpretados por Lula na presente entrevista, realizada na sede
do Instituto Lula, em São Paulo, em 14 de fevereiro de 2013. Traz contribuições
para compreender uma década fundamental na história brasileira. Ajuda-nos a
interpretar, pela visão de quem foi e continuará sendo uma das figuras mais
destacadas da política mundial no século XXI, conjuntura de excepcional riqueza
na luta pela construção de uma nação mais democrática e justa.
Que dados terá a sua disposição
um historiador que pretenda analisar o governo Lula no futuro, além dos
publicados pela mídia tradicional?
Quando faltava um ano, um
ano e pouco para acabar o meu mandato, decidi que iria registrar em cartório
tudo que o meu governo fez. No dia 15 de dezembro [de 2010], a Miriam Belchior,
que coordenou esse processo, registrou em cartório todas as atividades do
Ministério do Planejamento, da Economia, da Pesca, tudo. Por quê? Porque, eu
queria contar um pouco a história deste país. Eu aí falei aos ministros: “Vão
ter que registrar em cartório, porque, se vocês mentirem, não será para mim.
Vocês estarão cometendo falsidade ideológica”. São seis volumes. Estão em
letrinhas peque- nas. Está tudo muito bem-feitinho, tem a assinatura de todo
mundo. Se você quer saber o que nós fizemos para combater a corrupção, está aí;
o que nós fizemos na área da Educação, está aí; o que nós fizemos na área do
transporte, está aí [...]. Dia 15 de dezembro nós fizemos um ato público (para
lançar o balanço de governo). Está tudo na internet. Antes, a gente não
conseguia encontrar a agenda do Sarney, do Collor, do Fernando Henrique
Cardoso, do Itamar. Não se sabia o que eles faziam. Nós passamos a registrar a
agenda. Eu lembro que um dia uma CPI mandou um ofício para o Gilberto Carvalho
perguntando se eu tinha me encontrado com o presidente de um banco tal. Aí eu
disse ao Gilberto: “Fala para eles procurarem na internet. Está lá minha
agenda”. A gente passou a tornar pública a atividade do governo. Por que tinha
que ser segredo de Estado? E eu falei: “Então nós vamos registrar, para ficar
na história”. Quando uma universidade quiser pesquisar, vai saber como foi
tratado o assunto. Foi um trabalho de cão fazer isso: exigir que os ministros
cumprissem, pois há sempre uns mais organizados que outros. A exigência de
registrar em cartório era para eles serem verdadeiros com eles mesmos.
Qual o balanço que o senhor
faz dos anos de governo do PT e aliados?
Esses anos, se não foram os
melhores, fazem parte do melhor período que este país viveu em muitos e muitos
anos. Se formos analisar as carências que ainda existem, as necessidades vitais
de um povo na maioria das vezes esquecido pelos governantes, vamos perceber que
ainda falta muito a fazer para garantir a esse povo a total conquista da
cidadania. Mas, se analisarmos o que foi feito, vamos perceber que outros
países não conseguiram, em trinta anos, fazer o que nós conseguimos fazer em
dez anos. Quebramos tabus e conceitos preestabelecidos por alguns economistas,
por alguns sociólogos, por alguns historiadores. Algumas verdades foram por
água abaixo. Primeiro, provamos que era plenamente possível crescer
distribuindo renda, que não era preciso esperar crescer para distribuir.
Segundo, provamos que era possível aumentar salário sem inflação. Nos últimos
10 anos, os trabalhadores organizados tiveram aumento real: [...] o
salário-mínimo aumentou quase 74% e a inflação esteve controlada. Terceiro,
durante essa década aumentamos o nosso comércio exterior e o nosso mercado
interno sem que isso resultasse em conflito. Diziam antes que não era possível
crescer concomitantemente mercado externo e mercado interno. Esses foram alguns
tabus que nós quebramos. E, ao mesmo tempo, fizemos uma coisa que eu considero
extremamente importante: provamos que pouco dinheiro na mão de muitos é
distribuição de renda e que muito dinheiro na mão de poucos é concentração de
renda.
A quebra desses tabus foi
percebida pela sociedade?
Muita gente da classe média
e rica acabou compreendendo. Aqueles que ironizavam o Programa Bolsa Família,
[...] o aumento do crédito para a agricultura familiar, [...] o programa Luz
pra todos e todas as outras políticas sociais, aqueles que ironizavam dizendo
que era esmola, que era assistencialismo, perceberam que foram milhões de pessoas,
cada uma com um pouquinho de dinheiro na mão, que começaram a dar estabilidade
à economia brasileira, fazendo com que ela crescesse, gerasse mais emprego e
renda. Esta é uma lógica que todo mundo deveria entender.
Existe algum lugar no mundo
em que as pessoas vão produzir se não tiver consumo? Se isso acontecer, é
porque a economia voltou-se para a exportação [e, nessa lógica,] o povo do país
que se dane. Você pode fazer uma grande política de produção para exportação,
mas nunca conseguirá, com isso, governar para mais de 35% da população,
inclusive porque as fábricas sofisticadas geram menos empregos. Hoje, os postos
de trabalho são gerados no setor de serviços e, mesmo assim, menos do que
antes.
Precisamos ter em mente o
seguinte: que país do mundo vai crescer se o seu povo não tiver poder de
compra, se o povo não puder comprar aquilo que é produzido dentro do país? Do
ponto de vista econômico, eu acho que marcamos uma nova trajetória na vida
brasileira. A partir daí, foram dadas as condições para que as taxas de juros
fossem colocadas em um patamar aceitável pela sociedade.
O senhor considera que
cumpriu as promessas que fez ao povo brasileiro nas suas duas campanhas
eleitorais?
No fim do primeiro mandato,
pedi à Clara Ant para fazer um levantamento do programa de governo. Queria
saber se o tínhamos cumprido. Nós mais do que cumprimos! E, no segundo mandato,
nós mais do que cumprimos aquilo que já tínhamos cumprido no primeiro mandato.
Isso é importante: você faz
um programa, estabelece metas e cumpre as metas. E as pessoas têm conhecimento
disso. E qual o legado de tudo isso? é que o povo sentiu que participou do
governo. As pessoas falavam: “Eu sou igual a esse cara” ou então “Esse cara
está junto comigo”. E também pensam o mesmo de Dilma. [O brasileiro] começa a
se sentir parte do projeto: ele sabe, ele contribui, ele dá a sua opinião, ele
é contra, ele é a favor... As conferências nacionais foram a consagração disso.
A gente não tinha orçamento participativo, não era possível fazer orçamento
participativo na união. Então, nós resolvermos criar condições para o povo
participar. Promovemos conferências municipais, estaduais e nacionais. Foi a
forma mais fantástica de um presidente da República ouvir o que o povo tinha a
dizer. Eu fui a 95% das convenções nacionais. Ficava duas ou três horas sentado
no plenário ouvindo o povo falar mal, [...] contestar, [...] dizer que não
estava bom ou estava bom e saía dali com um documento que servia de parâmetro
para melhorar as coisas que estávamos fazendo.
Qual foi o grande legado dos
10 anos de seu governo?
Nesses dez anos recuperamos
o orgulho pessoal, o orgulho próprio, a autoestima. Conquistamos coisas que
antes pareciam impossíveis. Passamos a ser mais respeitados no mundo: as
pessoas não olham para o Brasil, hoje, e veem apenas criança de rua, Pelé e
Carnaval. As pessoas sabem que este país tem governo, que este país tem polí-
tica, que este país passou a ser tratado até às vezes como referência para
muitas coisas que foram decididas no mundo.
Esse é um legado que vai
marcar esses dez anos. E eu tenho convicção de que, com a continuidade da
companheira Dilma no governo, isso vai ser definitivamente consagrado.
Parto do pressuposto de que
chegaremos a 2016 como a quinta economia do mundo. Mas o mais importante é ter
a clareza de que o objetivo maior não é o Brasil ser a quinta, ser a quarta
economia do mundo. é importante que se melhore dia a dia a qualidade de vida do
povo brasileiro, seja do ponto de vista dos salários, seja do ponto de vista da
habitação, do ponto de vista do saneamento básico, do ponto de vista da
qualidade de vida.
Esse foi o grande legado
desses dez anos: nós nos descobrirmos para nós mesmos. Nós não somos mais
tratados como cidadãos de segunda classe. Nós temos o direito hoje de andar de
avião, de entrar num shopping e comprar coisas que todo mundo sempre quis comprar.
E recuperamos o prazer, o gosto de ser brasileiro, o gosto de amar o nosso
país.
Do que o senhor mais se
orgulha no seu governo?
Eu sinto um orgulho – e
nesse caso é um orgulho muito pessoal, até um pouco de vaidade –, que é o de
passar para a história como o único presidente sem diplo-ma universitário, mas
o que criou mais universidades neste país. Esse número eu dou sempre, que é um
número muito exitoso e que vai ser muito difícil alguém superar: 14
universidades federais novas, 126 extensões universitárias, 214 escolas
técnicas. Eu não estou contando esses dois anos agora porque eu não sei quantas
foram feitas agora.
Ontem eu recebi uma carta de
um cara, motorista de ônibus, que agradece não apenas a formação do filho dele,
em Biomedicina, mas também sua formação em Direito. Os dois pelo Prouni8. Essas
coisas aconteceram porque, na sua sabedoria, o povo conseguiu, depois de tanto
medo, depois de tanto preconceito, testar um deles para governar este país.
Quando começou o governo, o
senhor devia ter uma ideia do que ele seria. O que mudou daquela ideia inicial,
o que se realizou e o que não se realizou, e por quê?
Tínhamos um programa e
parecia que ele não estava andando. Eu lembro que o ministro Luiz Furlan, cada
vez que tinha audiência, dizia: “Já estamos no governo há tantos dias, faltam
só tantos dias para acabar e nós precisamos definir o que nós queremos que
tenha acontecido no final do mandato. qual é a fotografia que nós queremos”. E
eu falava: “Furlan, a fotografia está sendo tirada”. Não é possível ficar com
pressa de obter resultados. Nós temos que provar, no final de um mandato, se
nós fomos capazes de fazer aquilo que nos propusemos a fazer. Se a gente for
trabalhar em função das manchetes dos jornais, a gente parece que faz tudo e
termina não fazendo nada.
Então é o seguinte: eu
plantei um pé de jabuticaba. Se esse pé nascer saudável, vai ter sempre alguém
dizendo: “Mas, Lula, não está dando jabuticaba, está demorando”. Se for cortar
o pé e plantar outra coisa, eu nunca vou ter jabuticaba. Então, eu tenho que
acreditar que, se eu adubar corretamente, aquele pé vai dar jabuticaba de
qualidade. E eu citava esses exemplos no governo... Soja tem que esperar 120
dias, o feijão tem que esperar 90 dias. Não adianta ficar repisando, “faz uma
semana que eu plantei e não nasceu”. Tem que ter paciência. Eu acho que eu fui
o presidente que mais pronunciei a palavra “paciência”, “paciência”... Senão
você fica louco.
Tem gente na política que
levanta de manhã, lê o jornal e quer dar resposta ao jornal. E daí não faz
outra coisa. Eu não fui eleito para ficar o tempo todo dando res- posta a
jornal. Eu fui eleito para governar um país. E isso me deu tranquilidade
suficiente para ver que o programa de governo ia ser cumprido.
Quando o senhor perdeu a
paciência?
Obviamente que nós tivemos
problemas no começo. Você acha que é simples um metalúrgico sentar naquela
cadeira na qual sentaram tantas outras personalidades, que via pela televisão,
que achava que era mais importante do que eu... E o mesmo em relação a dormir
no quarto em que dormiu tanta gente importante ou que, pelo menos à voz da
opinião pública, são importantes. E eu ficava pensando: “Será que é verdade que
eu estou aqui?”. No começo tinha muita ansiedade. “Será que nós vamos dar conta
de fazer isso? Será que vai ser possível?”, eu me perguntava. Eu acho que nós
fizemos. Com erro e com muita tensão, mas fizemos.
Até as coisas mais simples
geravam tensão. Quando eu propus criar o Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social, qual foi a reação do Congresso? [A interpretação] era de que nós
queríamos criar um instrumento [de decisão] por fora do Congresso. Era uma
opinião inclusive de muitos dos nossos [parlamentares]. Existia um processo de
desconfiança muito grande, mas eu sabia que, para que o governo desse certo, eu
precisava conquistar a confiança dos trabalhadores, mas também conquistar a
confiança dos outros segmentos da sociedade. E isso exigia muita conversa,
muito diálogo. E foi isso que nós fizemos.
Tivemos tropeços, é lógico.
Muitos tropeços. O ano de 2005 foi muito complicado. quando saiu a denúncia,
foi uma situação muito delicada. Se não tivéssemos cuidado, não iríamos
discutir mais nada do futuro, só aquilo que a imprensa queria que a gente
discutisse. um dia, eu cheguei em casa e disse: “Marisa, a partir de hoje, se a
gente quiser governar este país, a gente não vai ver televisão, a gente não vai
ver revista, a gente não vai ler jornal”. Eu passei a ter meia hora de conversa
por dia com a assessoria de imprensa, para ver qual era o noticiário [...], mas
eu não aceitava levantar de manhã, ligar a televisão e já ficar contaminado.
Então eu acho que isso foi um dado muito importante.
Eu tinha uma equipe e
criamos uma sala de situação, da qual participavam Dilma, Ciro [Gomes],
Gilberto [Carvalho] e Márcio [Thomaz Bastos]. E era muito engraçado: eu chegava
ao Palácio e eles estavam todos nervosos. E eu estava tranquilo e falava:
“Vocês estão vendo? Vocês leem jornal... Vocês estão nervosos por quê?”.
Qual mandato foi mais
difícil para o cumprimento das metas do governo, o primeiro ou o segundo?
O resultado foi auspicioso
do ponto de vista da execução das coisas que nós que- ríamos fazer. Sabe, a
imprensa queria que eu gerasse mais empregos em quatro anos do que os outros
tinham gerado em 20 anos. Nós nunca falamos em criar 10 milhões de empregos. no
nosso programa de governo estava escrito o seguinte: “O Brasil precisa criar 10
milhões de empregos”. Nunca falei que era eu que ia criar. O Brasil precisava
disso para resolver o problema do desemprego. Pois bem, nós criamos, até agora,
em 10 anos, quase 18 milhões de empregos formais, com carteira assinada.
Nós tomamos medidas erradas
no começo. Eu lembro que chegamos a anunciar, na campanha ainda, o programa do
primeiro emprego. Era uma ideia de o governo pagar para o empresário dar
emprego. Concluímos que essas coisas fictícias não funcionam. Pode ficar muito
bom no discurso, mas o patrão só vai contratar um trabalhador se precisar dele.
Nem o Estado contrata se não precisa, por que o patrão, um empresário privado,
iria contratar? Aí nós fizemos a lei, aprovamos a lei, mas percebemos que não
ia dar certo aquilo. Então, o que podia dar certo? A teoria original: “Dê um
pouco de recurso às camadas mais pobres da população que as coisas começam a
acontecer”.
Foi isso. E aí o nosso
programa foi cumprido, e as coisas que pareciam difíceis ficaram fáceis. Deus
queira que os outros repitam, mas sinceramente o que nós fizemos de 2007 a
2010, ou seja, do dia 1o de janeiro de 2007 ao dia 31 de dezembro de 2010, é muito
difícil de repetir. Isso porque a gente vinha com o aprendizado do primeiro
mandato, todo mundo estava afiado. A Dilma tinha tomado conta da Casa Civil com
muita competência e com o PAC as coisas começaram a acontecer. Era um PAC para
a Educação, um PAC para Ciência e tecnologia... As coisas começaram a fluir com
uma facilidade enorme. E ficou tudo mais fácil, embora os nossos companheiros
da mídia ainda continuassem a nos tratar como inimigos.
Como o senhor avalia suas
relações com a mídia?
Às vezes fico triste. A
impressão que eu tenho é que o ódio que [os donos da mídia] têm do PT e a raiva
que eles têm de mim se devem às coisas boas que nós fazemos, não às coisas
ruins.
Talvez eles tenham raiva
porque, durante o meu mandato, eu não fui jantar com nenhum deles, não fui à
casa deles, não visitei nenhuma redação. Não era esse o papel de um presidente.
Não só não fui jantar com eles como não fui jantar com ninguém. Não fui a
casamento, não fui a aniversário, não fui a batizado. Nem em aniversário de companheiros
meus fui. Recebi dezenas de convites de casamentos e não fui a nenhum, porque
eu falava o seguinte: “O presidente não vai se expor”. Hoje, com o celular,
ninguém pede licença para mais nada – para fotografar, para gravar.
Existe uma hipocrisia muito
forte em relação à política. A classe política tem de reagir para ganhar
respeito. Todo mundo pode beber, o político não pode. Todo mundo pode contar
piada, o político não pode. O político tem que ser o ser perfeito que não
existe, o ser perfeito que nem o cara que critica é. E nós aceitamos isso. Eu
tenho dito nos meus debates, sobretudo para a juventude: “Olha, o político
perfeito que vocês querem não está dentro de mim. Está dentro de vocês. Então,
levantem e vão fazer política. Vão ser candidatos, vão organizar um partido”.
Aquelas três promessas do
meu discurso de posse – “primeiro, eu vou fazer o necessário, depois eu vou
fazer o possível e, quando menos imaginar, estarei fazendo o impossível” –
deram certo. E a coisa sagrada de tudo isso: não ter medo de conversar com o
povo. Quando você tem 92% de aprovação nas pesquisas de opinião pública, não
precisa conversar com o povo. Você tem que conversar com o povo quando a porca
está entortando o rabo, quando está sendo acusado, achincalhado. Na hora que
você conversa com o povo, e que você fala olhando no olho das pessoas, elas
sabem distinguir o que é mentira e o que é a verdade e quem está com quem nessa
história.
Por que seu governo provocou
tanta reação da elite e da mídia? A reação das oposições aos governos do PT não
é desproporcional, tendo em vista os resultados que foram apresentados?
Em 1979, eu era
possivelmente a única unanimidade nacional no movimento sindical, quando surgiu
a bandeira de luta pela liberdade de organização política. E eu lembro que,
pela primeira vez num comício lá em São Bernardo do Campo, num comício com o
PMDB, eu falei na criação do Partido dos trabalhadores. Mas para as pessoas que
estavam em cima do palanque, a liberdade política não era pra criar outros
partidos. Era pra consagrar o PMDB, o partido em que todos nós um dia estivemos
juntos contra o regime militar. E quando nós nascemos, o que diziam de nós?
“não é possível ter um partido com as características do PT, um partido criado
por trabalhadores, dirigido por trabalhadores. Isso não é real, isso não está
escrito em nenhum lugar do mundo. Como é que vão agora esses metalúrgicos aqui
do ABC, esses bancários, esses químicos, criar um partido?” E nós criamos o
partido. Depois eles achavam que nós não passaríamos de uma coisa pequenininha,
bonita e radical. E nós não nascemos para sermos bonitos, nem radicais. Nós
nascemos para ganhar o poder.
Mas vocês nasceram
radicais...
O PT era muito rígido, e foi
essa rigidez que lhe permitiu chegar aonde chegou. Só que, quando um partido
cresce muito, entra gente de todas as espécies. Ou seja, quando você define que
vai criar um partido democrático e de massa, pode entrar no partido um cordeiro
e pode entrar uma onça, mas o partido chega ao poder.
Então, a nossa chegada ao
poder foi vista por eles não como uma alternância de poder benéfica à
democracia, não como uma coisa normal: houve uma disputa, ganhou quem ganhou,
leva quem ganhou, governa quem ganhou e fim de papo. Não é isso? Eles não viram
assim. Quer dizer, eu era um indesejado que cheguei lá. Sabe aquele cara que é
convidado para uma festa, e o anfitrião nem tinha convidado direito. Fala
assim: “Se você quiser, passa lá”. E você passa e o cara fala: “Esse cara
acreditou?”. Então, nós passamos na festa, e o que é mais grave, acertamos.
E depois, tentaram usar o
episódio do mensalão para acabar com o PT e, obviamente, acabar com o meu
governo. Na época, tinha gente que dizia: “O PT morreu, o PT acabou”.
Passaram-se seis anos e quem acabou foram eles. O DEM nem sei se existe mais. O
PSDB está tentando ressuscitar o jovem Fernando Henrique Cardoso porque não
criou lideranças, não promoveu lideranças. Isso deve aumentar a bronca que eles
têm da gente – que, aliás, não é recíproca.
O senhor não tem raiva da
oposição?
Eu não tenho raiva deles e
não guardo mágoas. O que eu guardo é o seguinte: eles nunca ganharam tanto dinheiro
na vida como ganharam no meu governo. Nem as emissoras de televisão, que
estavam quase todas quebradas; os jornais, quase todos quebrados quando assumi
o governo. As empresas e os bancos também nunca ganharam tanto, mas os
trabalhadores também ganharam. Agora, obviamente que eu tenho clareza que o
trabalhador só pode ganhar se a empresa for bem. Eu não conheço, na história da
humanidade, um momento em que a empresa vai mal e que os trabalhadores
conseguem conquistar alguma coisa a não ser o desemprego.
Por que isso não se traduz
num relato favorável aos governos Lula e Dilma pela mídia?
Este país está dando certo,
mas não se vê isso na imprensa brasileira. É inacreditável. Uma vez o Mário
Soares veio ao Brasil fazer uma entrevista comigo13. E ele chegou aqui com o Le
Monde, com Der Spiegel, com o Financial Times e mais várias outras revistas e
jornais internacionais e falou: “Lula, eu estou enlouquecido. Eu venho de um
continente em que todas as matérias só falam bem do Brasil, enaltecem o Brasil.
quando eu chego ao Brasil, eu leio a imprensa brasileira e ela diz que o Brasil
acabou, nada dá certo neste país”. Até hoje é assim. Se você quiser se informar
corretamente, você tem um ou outro colunista e um jornal de economia, que eu
não vou citar o nome, que têm coisas razoáveis. Das revistas, sobra a Carta
Capital para você ler alguma coisa interessante. E o restante é a apologia do
fim do mundo.
Existe um projeto político
por trás desse comportamento da mídia?
Olha, mesmo que nós não
tivéssemos competência – e temos muita, e a Dilma tem bastante – esse país só
pode dar certo, porque é um país que tem 360 milhões de hectares de reserva
florestal; um país que tem 12% da água doce do mundo; um país que tem oito mil
quilômetros de costa marítima; um país que tem o pré-sal; um país que tem esse
povo ávido por melhorar de vida não tem por que dar errado. É só o governo
estimular. É só o governo dar oportunidade para essa gente e essa gente cresce.
Como nunca fizeram isso
antes, eles ficam muito nervosos, muito irritados, e aí eles fazem o papel do
partido político, porque os partidos nos quais eles acreditavam estão quase
exauridos. Pega uma pesquisa para você ver a diferença do PT e dos outros. Eu
fico imaginando o ódio que ficaram de mim depois da apuração aqui de São
Paulo14, porque todos eles estavam preparados para dizer: “Lula derrotado”. E,
quando o Haddad ganhou, eles não sabiam o que falar.
Uma parte da mídia passou a
querer substituir os partidos políticos. Ou seja, o debate que deveria ser
feito no Parlamento, entre os partidos, e pela sociedade, está sendo
monopolizado pela mídia. Está sendo feito somente pelas redações e, dentro
delas, por poucos colunistas, todos eles partidários que tentam fingir que não
são políticos, que são imparciais. Isso é ruim, é muito ruim.
A negação da política pela
imprensa é um ato político?
Tentar negar a política é um
desastre, e esse é um erro que pode ser cometido tanto pela direita quanto pela
esquerda. Tentar negar a política não deu certo em nenhum lugar do mundo. O que
vem depois é pior. Feliz da nação que tem como interlocutores instituições
fortes, sejam elas partidos, sindicatos, igrejas ou movimentos sociais. Quanto
mais fortes as instituições e os movimentos sociais, mais tranquilidade de que
a democracia estará garantida. E é isso que eles não compreendem.
Um governo do PT teria as
mesmas características, se o senhor tivesse vencido as eleições anteriores?
Não! Quando eu agradeço a
Deus por não ter ganhado em 1989 e ficar 12 anos na espera, não é porque eu
gosto de perder. Nunca vi ninguém agradecer a Deus porque perde. é porque
possivelmente esses 12 anos de espera tenham sido o tempo necessário para o
aprendizado do PT, para que o partido exercesse a sua competência, adquirisse
experiência na administração pública. Nós ganhamos prefeituras importantes e
governos importantes. Quando cheguei ao governo, tinha uma base do PT mais
calejada. Tinha aliados mais calejados.
Mas o senhor resistiu a se
candidatar depois da segunda derrota...
De fato, eu relutava muito à
terceira candidatura, em 1998, e à quarta candidatura, em 2002, se fosse para
fazer a mesma coisa. Eu já tinha obtido três vezes 30% dos votos no primeiro
turno, tinha ido três vezes ao segundo turno e todas às vezes eu fui o segundo
colocado. Em todas as eleições presidenciais, de 1989, 1994 e 1998, eu fui
candidato. Então, quando eu fui disputar a quarta eleição, eu falei: “não posso
fazer a mesma coisa. nós temos que fazer alguma coisa. temos que dar um sinal
diferente para a sociedade”.
Aí aconteceu uma coisa que
foi o dedo de Deus, viu? Vocês não acreditam em Deus, mas eu acredito muito.
Pois bem, tinha uma festa de cinquenta anos de vida empresarial do José Alencar
em Minas Gerais. Eu tinha sido convidado e não queria ir. O José Dirceu era o
presidente e eu era o presidente de honra do PT. Falei: “Eu não vou, o que eu
vou fazer na festa do José Alencar? O que eu vou fazer lá? não tenho nada a ver
com o José Alencar.” O José Dirceu, então, disse: “Vamos lá, porque ele é um
parceirão, ele é senador, vamos lá”. Acabei concordando.
Cheguei lá e estavam
presentes vários governadores, ministros, muitos senadores. Aí veio o assessor
do José Alencar e pediu que eu falasse, mas eu não quis. “quem tem que falar é
o José Dirceu, que é o presidente do partido. Eu não vou falar.” E fiquei lá.
Aí discursou muita gente, e por último o zé Alencar. Ele contou toda a história
dele e, quando ele terminou de falar, eu falei: “Zé, acabei de encontrar o meu
vice. é esse cara aqui”.
O senhor não o conhecia até
então?
Eu não o conhecia, mas
pensei: “é desse cara que eu preciso”. Daí, na semana seguinte, ele foi
derrotado na disputa pela Presidência do Senado. Ele só teve um voto, o dele
próprio. Então fui a Brasília conversar com ele. Conversei com ele e acertamos
que ele seria meu vice, e para isso teria que sair do PMDB. Ele topou sair do
PMDB.
Quando fizemos a festa do
lançamento da candidatura no Anhembi, um grupo de pessoas tentou vaiar o José
Alencar. Ele tinha um discurso por escrito, mas ele deixou o discurso de lado e
falou: “Com menos idade do que vocês que estão me vaiando, eu já dormia num
banco de praça para ganhar meu pão de cada dia”. Aí ele calou o pessoal e
passou a ganhar o PT. O zé Alencar passou a ser chamado pelo PT para debater em
tudo quanto é lugar.
Depois nós fizemos a Carta
ao Povo Brasileiro, que foi um documento muito necessário. Eu era contra.
Aliás, eu era radicalmente contra a carta porque ela dizia coisas que eu não
queria falar, mas hoje eu reconheço que ela foi extremamente importante. Então,
era preciso tentar construir alianças. é importante lembrar que, no primeiro
turno, nós não tivemos apoio do PMDB. Não tivemos apoio de quase nenhum partido
no primeiro turno. Então nós falamos sozinhos. Aquela eleição, a de 2002, eu
jamais, em qualquer momento, achei que fosse perder. Eu estava seguro que a
eleição era minha. Eu lembro que, quando eu cheguei para a apuração do primeiro
turno, estava todo mundo nervoso: Duda Mendonça e Zé Dirceu na televisão, com o
computador... não conseguimos ganhar no primeiro turno. Eu falei: “Gente, olha,
a vitória apenas foi adiada por quarenta dias. Vamos ganhar essas eleições”. Eu
tinha mesmo essa convicção.
Então, na campanha para o
segundo turno, se estabeleceram as conversas com os outros partidos políticos.
Nós, obviamente, tínhamos uma preocupação com a governabilidade. Por mais puros
que quiséssemos ser, tínhamos a clareza de que, para aprovar alguma coisa no
Congresso, tínhamos que ter pelo menos 50% mais um dos votos, tanto na Câmara
como no Senado. Era preciso construir essa maioria, senão você não governa. O
PMDB não ficou conosco no primeiro momento, ficou contra. Uma parte do PMDB
esteve favorável à gente. Aí tivemos outros partidos intermediários que fizeram
aliança conosco.
O senhor estruturou uma estratégia
de alianças que tornou possível que setores que vinham de outra origem
legitimassem políticas progressistas. Mas isso não foi necessariamente
compreendido e não houve um discurso para justificar a política de alianças.
Qual a lógica dessa estratégia?
É engraçado: quando a
direita fazia articulação, estava tudo bem. Quando o ACM articulava para apoiar
Fernando Henrique Cardoso, a imprensa o via como gênio, o gênio da política, o
gênio que constrói. Quando éramos nós, a imprensa dizia: “Onde é que já se viu
o PT conversar com essa gente?”. Mas nós conversamos. Nós tínhamos aprendido a
fazer política e que, quando você faz uma política de coalizão, os aliados têm
que participar do governo. É assim em qualquer democracia do mundo. E vai
continuar a ser assim. Enquanto não tiver uma reforma política no Brasil, vai
ser assim: quem ganhar, quem quiser governar, vai ter que conversar com o
Congresso, vai ter que conversar com a Câmara, vai ter que conversar com o
Senado, vai ter que conversar com o movimento sindical, vai ter que conversar
com os empresários. É assim que se governa.
Aí nós tivemos um momento
muito importante de diálogo com todos os setores sociais. Eu tive uma relação
extraordinária, do catador de papel aos bancos, aos empresários. Eu mantive uma
relação civilizada com todos os segmentos da sociedade. Nunca deixei de falar
em nenhum discurso: “Eu governo para todos, mas o meu olhar preferencial é para
a parte mais pobre da sociedade brasileira”. Portanto, todo mundo tem claro
isso. Eu sei de onde eu vim e sei para onde eu vou depois de deixar a
Presidência.
Isso permitiu que a gente
tivesse uma relação, eu diria, sincera, com os partidos e os setores sociais. E
que os partidos tivessem um papel importante no sucesso do governo. Não acho
que devesse ser diferente. E é bom que a gente tenha problema para resolver,
porque quanto mais problema você tem mais você exerce a democracia. E quanto
mais você resolve, mais forte você fica.
A negociação é a
pré-condição para a solidez do governo?
Tem político – essa é uma
coisa que você, Emir, como cientista político, não pode esquecer –, tem
político dentro do Congresso que pensa o seguinte: governo bom é aquele fraco,
porque no governo fraco a gente manda, a gente impõe.
Uma vez, o ACM pediu uma
conversa comigo, e eu tinha muita cisma dele. Eu falei: “Márcio [Thomaz
Bastos], para conversar com ele, eu tenho que ter testemunha. Só se você
estiver presente”. E o Márcio marcou uma reunião.
Eu fui conversar com o ACM e
ele queria que o PT o apoiasse para a Presidência do Senado. Aí ele falava:
“Lula, é o seguinte: eu mando. tem muito senador que ajudei a arrumar dinheiro
para campanha. na mesa do Fernando Henrique Cardoso, quando eu dou um murro,
ele fica com medo. Então, se você me apoiar, todo projeto que você quiser, eu
faço passar no Congresso nacional”. Aí eu respondi: “ACM, eu sempre achei que
os presidentes das instituições devessem ser as pessoas mais fortes. Eu não
tenho dúvida que você pode ser um bom presidente. Agora, eu não tenho como
explicar, para minha consciência, o PT apoiando o Toninho Malvadeza”. Era esse
o apelido dele. “Então, não me peça o impossível, o que eu não posso fazer”.
Então, o que muitos
políticos desejam? Um governo fraco, um governo debilitado, porque aí a pressão
aumenta, as exigências aumentam. Quando o governo está bem, fica muito mais
fácil governar. Mas, mesmo assim, quando o governo está bem, não deve afrontar
o Congresso nacional. O governo tem que entender que o exercício da democracia
é a convivência na diversidade. Eu dizia que democracia não é um pacto de
silêncio. Democracia é uma sociedade em movimentação por várias coisas, e nós
temos que saber lidar com isso.
Nós aprendemos a construir
as alianças necessárias. Hoje isso está nas cidades, nos estados. Se não for
assim, a gente não governa. E muitas vezes, sozinho, você tem mais dificuldade.
Você lembra o que aconteceu quando o Sarney foi presidente? Em 1986, o PMDB fez
a maioria da Constituinte e teve 23 governos estaduais. Pergunta para o Sarney
se ele teve facilidade em governar o país com a maioria no Congresso. Não teve.
Esse jogo da democracia, de você ter que conversar com forças diferentes, de
elas brigarem entre si, às vezes ajuda mais o governo do que se você tiver
trezentos com a mesma bandeirola.
Qual é o meu medo? O meu
medo é que se passe a menosprezar o exercício da democracia e se comece a
aplicar a ditadura de um partido sobre os demais. Não gosto muito da palavra
hegemonia, sabe. O exercício da hegemonia na política é muito ruim. Mesmo
quando você tem numericamente a maioria, é importante que, humildemente, você
exerça a democracia. é isso que consolida as instituições de um país e foi isso
que eu exercitei durante o meu mandato, e que a Dilma está exercitando agora
com muita competência.
Além das políticas
econômicas e sociais, a política externa da última década fez com que o Brasil
alcançasse reconhecimento mundial. Como o senhor avalia a política externa do
governo, particularmente no que diz respeito ao processo de integração
latino-americana que se intensificou de forma muito significativa?
Eu às vezes ficava
imaginando quando é que a grande mídia brasileira iria reconhecer que nossa
política externa foi um trabalho benéfico para o Brasil. Entretanto, quanto
mais a gente trabalhava, mais eles ouviam embaixadores que eram contra a nossa
política. Era inacreditável, porque eles poderiam convidar o ministro para
falar, poderiam convidar o secretário do Itamaraty... não. Era sempre alguém
contra a política externa que falava.
Sinceramente, eu acho que
nós fizemos uma revolução na política externa brasileira. Houve uma combinação
da capacidade, da competência de trabalho do Itamaraty, sobretudo do ministro
Celso Amorim, com uma disposição política nossa de fazer as coisas acontecerem.
Se política externa a gente pudesse fazer por fax e por e-mail, a Hillary
Clinton não teria viajado tanto, o [Henry] Kissinger também não. Tem gente que
acha que política externa se faz por telefone, mas a relação humana produz uma
química entre as pessoas. Você tem que conversar, tem que pegar na mão da
pessoa, tem que abraçar a pessoa. Tem que olhar no olho da pessoa. é isso que
faz a coisa se diferenciar na relação humana.
Em janeiro de 2003, fui a
Davos. Eu saí do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre e fui a Davos.
Que fez dez anos agora...
Quando voltava de lá, eu
falei para o Celso Amorim: “Celso, nós temos condições de mudar a geopolítica
comercial e a política do mundo. não é possível que, no mundo, com tantos
países, só se ouça falar de Europa – de Europa em termos, porque Europa era
Alemanha, França e Inglaterra, não era Europa –, da China, da índia e dos
Estados unidos. não é possível”.
Bem, aí nós estabelecemos
uma política externa. Primeiro: mais agressividade comercial. Nós não temos que
ficar esperando as pessoas virem comprar. Nós temos que sair para vender. Vocês
estão lembrados que, na campanha, eu falava: “Eu vou querer um ministro das
Relações Exteriores que seja um mascate, um cara que faça como um desses
vendedores aqui em São Paulo, aquele que vai de casa em casa bater palma, com a
sacolinha de pano. Se em uma não querem comprar, vai a outra casa”. Então o
Brasil tem que ser assim. Por isso é que eu viajei tanto.
Foram quantos países?
Eu viajei pra mais de
noventa países. Eu viajei toda a América do Sul, toda a América Latina e o
Caribe. Eu viajei para dezenas de países africanos e asiáticos, e também para
outros países. qual é o dado concreto? O dado concreto é que eu sentia que tinha
um espaço.
Eu fui convidado para a
reunião do G8 em Evian, na França, em junho de 2003.
Estavam lá [George W.] Bush,
[Jacques] Chirac, Tony Blair, [Junichiro] Koizumi, o príncipe da Arábia Saudita
[Abdullah Bin Abdul Aziz Al-Saud], o Silvio Berlusconi, o [Gerhard] Schröder, o
[Vicente] Fox e eu.
E me colocaram numa sala sem
intérprete, só com aquele radinho de ouvido. E logo de cara me colocaram para
falar. Quase que eu falo: “O que vou dizer aqui?”... E eu comecei a perceber...
O que eu comecei a perceber? que eu era o único diferente naquela sala, que eu
era o único que tinha tido uma experiência que os outros não tinham tido. Eu
era o único que já tinha morado em lugar que deu enchente, eu era o único que
tinha perdido o emprego, eu era o único que tinha ficado 27 anos no chão de
fábrica, eu era o único que tinha passado pelo movimento sindical. Aí eu
pensei: “tenho é que falar da minha experiência para esses caras”.
E eu tive uma sorte... Todos
eles me trataram dignamente. A relação do Bush comigo foi muito boa, a relação
do Chirac comigo foi excelente, a relação com o Gordon Brown foi muito boa – do
Tony Blair antes, depois do Gordon Brown –, a relação dos alemães comigo foi
muito boa.
E eu tinha uma coisa na
cabeça. Eu aprendi com a minha mãe que, se você quiser ser respeitado, você tem
que se respeitar. Não espere que ninguém te trate com seriedade se você não for
sério. Então, eu tinha essa coisa na cabeça: “Esses caras vão me respeitar”...
O Brasil também era visto
como coisa folclórica no exterior. A gente estava numa situação em que os
homens da equipe econômica iam todo ano ao Fundo Monetário Internacional pedir
dinheiro para poder resolver o fundo de caixa. No tempo do nosso amigo
Delfim... O Delfim até hoje ironiza... Assinava contrato e depois não cumpria.
Eu não gostava das duas coisas. Primeiro: palavra é palavra. Segundo: eu não
vou ficar pedindo dinheiro para fechar caixa.
Essas duas coisas que eu
aprendi com uma mulher que era analfabeta – a lição de que ninguém respeita
quem não se respeita e não fique devendo favor a ninguém –, é que me fizeram
tomar algumas atitudes. Quando nós aumentamos o superávit primário para 4,25%,
muita gente do PT queria me matar. Também na reforma da Previdência – surgiu
até o PSOL de um racha do PT por conta disso e, depois, com as denúncias de
corrupção.
E a relação com o Fundo
Monetário Internacional?
Eu tinha uma obsessão. A
mesma obsessão que eu tinha de não pagar aluguel: eu tinha de acabar com o FMI,
de não ter dívida com o FMI. Quando eu casei, falei para a Marisa: “nós vamos
morar um ano de aluguel, depois vamos comprar uma casa”. Deu um pouco mais, um
ano e seis meses, comprei uma casinha. Comprei a casinha com vidros todos
quebrados – a molecada da escola quebrava tudo –, o portão todo quebrado.
Quando eu comprei a casa, no dia seguinte um cara a invadiu, levou a mulher
para dentro, os filhos, não queria sair da minha casa. Deu muito trabalho para
ele sair. Mas eu queria a minha casa. Então, quando eu casei a primeira vez,
falei para a Lourdes: “Olha, nós vamos trabalhar um ano e vamos comprar nossa
casinha”. Comprei uma casinha numa pirambeira, no Parque Bristol. Era uma
pirambeira de barro que, quando chovia, para ir trabalhar, tinha que colocar
galocha. Mas era a minha casa.
E eu não queria dever ao
FMI. Então, eu tomei essas atitudes. E Horst Köhler, que era presidente do FMI,
foi muito respeitoso comigo. Uma coisa que eu senti foi que, quando você age
com seriedade, as pessoas passam a torcer para as coisas acontecerem. Eu dizia
para todo mundo: “não peçam que a gente faça mais sacrifício do que esse povo
já fez, não peçam”. Mas eu garantia que o acordo que saísse eu honraria e faria
o que deveria ser feito no país. O ajuste fiscal que nós fizemos em 2004, pouca
gente teria coragem de fazer e nós fizemos. O que aconteceu: um ano depois, eu
estava de- volvendo o dinheiro do empréstimo para o FMI e um ano e meio depois
nós já tínhamos quase 100 bilhões de dólares de reservas. Esta também era uma
coisa que eu tinha obsessão: era preciso ter um dinheiro em caixa para ganhar
mais flexibilidade. Nós fizemos uma festa quando alcançamos 100 bilhões de
dólares de exportação. Colocamos até um contêiner lá na frente do Ministério.
Os tabus foram quebrados à
direita e à esquerda? Como se sentia com isso?
O caminho que nós tomamos
estava dando certo: apertar aquilo que você tem que apertar e flexibilizar o
que é importante. Nós criamos o Programa Bolsa Família em 2003, num ano em que
a gente não tinha condição de fazer nada. Em 2004, eu não tive coragem de vir a
São Paulo no 1o de maio. O [Luiz] Marinho estava num caminhão, na avenida
Paulista, e me ligou: “Lula, vem pra cá, nós vamos fazer uma festa pra você”.
Eu disse: “não vou, Marinho, não vou, sabe por quê? Porque eu não estou bem
comigo mesmo”. “Mas, por que você não vem?” “Marinho, eu não vou porque nós
demos zero por cento de aumento para o salário-mínimo, porque nós não podemos
aumentar o salário-mínimo.” Aí ele disse: “Mas aqui não vai ter problema”.
“Marinho, não é por vocês, é por mim, eu não estou bem comigo, eu não vou
participar do 1o de maio.” Eu estava arrasado. Eu cheguei a pensar: não vale a
pena chegar a presidente e não poder dar aumento de salário-mínimo.
E possivelmente tenha sido
essa atitude que tenha permitido a gente a dar mais nos anos seguintes. Nós
criamos a normatização, e as coisas começaram a funcionar. Tudo que foi
plantado foi nascendo no tempo certo, na hora certa.
Tivemos problemas com os
companheiros, e não foi fácil. É muito difícil tirar gente do governo. O
momento mais difícil é quando você tem que chamar alguém e falar: “Companheiro,
olha, lamentavelmente eu vou precisar do cargo e você vai ter que sair”. É uma
experiência muito complicada. Numa empresa é fácil, porque o dono da empresa
não conhece o empregado. é um cara de terceiro escalão que manda em- bora, que
contrata. Um funcionário de um ministério, tudo bem, mas um ministro? É o
presidente que chama, o presidente que tira.
Foram oito anos que
permitiram que a gente, ao concluir, pudesse dar de presente ao Brasil a
eleição da primeira mulher presidenta. Essa foi outra coisa muito difícil de
fazer. Eu sei o que eu aguentei de amigos meus, amigos mesmo, não eram
adversários, dizendo: “Lula, mas não dá. Ela não tem experiência, ela não é do
ramo. Lula, pelo amor de Deus”. E eu: “Companheiros, é preciso surpreender a
nação com uma novidade. Fazer a mesmice, todo mundo faz. Agora vamos
surpreender o Brasil com a novidade”.
O Brasil mudou nesses dez
anos. E o senhor, também mudou?
Uma das coisas boas da
velhice é você tirar proveito do que a vida te ensina, em vez de ficar
lamentando que está velho. A vida me ensinou muito. Criar um partido nas
condições que nós criamos foi muito difícil. Agora que o partido é grande, tudo
fica fácil, mas eu viajava esse país para fazer assembleia com três pessoas,
com quatro pessoas, com cinco pessoas. Saía daqui de São Paulo para o Acre pra
fazer reunião com dez pessoas, para convencer o Chico Mendes a entrar no PT,
para convencer o João Maia – aquele que recebeu dinheiro para votar na eleição
do Fernando Henrique Cardoso e era advogado da Contag – para entrar no PT. Era
muito difícil fazer caravana, viajar ao nordeste, pegar ônibus, ficar uma
semana andando, fazendo comício ao meio-dia, com um sol desgraçado, explicando
o que era o PT para que as pessoas quisessem se filiar.
Eu mudei. Mudei porque eu
aprendi muito, a vida me ensinou demais, mas eu continuo com os mesmos ideais.
Só tem sentido governar se você conseguir fazer com que as pessoas mais
necessitadas consigam evoluir de vida. As pessoas precisam somente de
oportunidade. Tendo oportunidade, todo mundo pode ser igual. Pode ter um mais
inteligente que o outro, mas não tem ninguém burro. As pessoas só precisam de
uma chance. E nós começamos a fazer isso. Não é que o trabalho esteja
terminado, não. Ou seja, você não muda gerações de equívocos em apenas uma
geração. Precisa de um tempo para você fazer. O caminho está correto e está
bem.
E o PT mudou?
Existem dois PTs. Um é o PT
congressual, parlamentar, o PT dos dirigentes. E outra coisa é o PT da base. Eu
diria que 90% da base do PT continua igualzinha ao que era em 1980. Ela
continua querendo um partido que não faça aliança política, mas ao mesmo tempo
sabe que, para ganhar, tem que fazer acordos políticos. É uma base muito
exigente, muito solidária e ainda desconhecida de parte da elite brasileira que
conhece o PT superficialmente. O PT é muito forte no movimento social. O PT é
muito forte no interior deste país. E nem sempre essa fortaleza se apresenta na
quantidade de votos.
E tem o PT eleitoreiro. E,
hoje, ou nós fazemos uma reforma política e mudamos a lógica da política, ou a
política vai virar mais pervertida do que já foi em qualquer outro momento. é
preciso que as pessoas compreendam que não só a gente deveria ter financiamento
público de campanha, como deveria ser crime inafiançável ter dinheiro privado
nas campanhas; que você precisa fazer o voto por lista, para que a briga se dê
internamente no partido. Você pode fazer um modelo misto – um voto pode ser
para a lista, o outro para o candidato. O que não dá é para continuar do jeito
que está. Sinceramente, não dá para continuar do jeito que está.
Por quê?
A eleição está ficando uma
coisa muito complicada pro Brasil. no mundo inteiro. no Brasil, se o PT não
reagir a isso, poucos partidos estarão dispostos a reagir. Então o PT precisa
reagir e tentar colocar em discussão a reforma política. Eu tentei, quando
presidente, falar de uma Constituinte exclusiva, que é o caminho: eleger
pessoas que só vão fazer a reforma política, que vão lá [para o Congresso],
mudam o jogo e depois vão embora. E daí se convocam eleições para o Congresso.
O que não dá é pra continuar assim.
Às vezes tenho a impressão
que partido político é um negócio, quando, na verdade, deveria ser um item
extremamente importante para a sociedade. A sociedade tem que acreditar no
partido, tem que participar dos partidos.
O PT não mudou
necessariamente para melhor?
O PT mudou porque aprendeu a
convivência democrática da diversidade; mas, em muitos momentos, o PT cometeu
os mesmos desvios que criticava como coisas totalmente equivocadas nos outros
partidos políticos. E esse é o jogo eleitoral que está colocado: se o político
não tiver dinheiro, não pode ser candidato, não tem como se eleger. Se não
tiver dinheiro para pagar a televisão, ele não faz uma campanha.
Enquanto você é pequeno,
ninguém questiona isso. Você começa a ser questionado quando vira alternativa
de poder. Então, o PT precisa saber disso. O PT, quanto mais forte ele for,
mais sério ele tem que ser. Eu não quero ter nenhum preconceito contra ninguém,
mas eu acho que o PT precisa voltar a acreditar em valores que a gente
acreditava e que foram banalizados por conta da disputa eleitoral. é o tipo de
legado que a gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. é provar
que é possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo político,
pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas não precisa
estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT precisa voltar
urgentemente a ter isso como uma tarefa dele e como exercício prático da
democracia. Não tem de voltar a ser sectário como era no começo.
Eu lembro que companheiros
meus perderam seu emprego numa metalúrgica, montaram um bar, mas quiseram
entrar no sindicato e não puderam. “Você não pode entrar porque é patrão”,
diziam. O coitado do cara tinha só um bar! A coitada da minha sogra, a mãe do
marido da Marisa, a mãe do primeiro marido da Marisa (eu sou o único cara que
tive três sogras na vida e uma que não era minha sogra; era sogra da minha
mulher, por conta do ex-marido dela, que eu adotei como sogra), a coitada tinha
um fusquinha 1966 que era herança do marido. E ela ganhava acho que 600 –
naquele tempo era como se fosse um salário-mínimo de hoje – de aposentadoria,
mas gostava de andar bem-vestida. Ela chegava à reunião do PT e o pessoal
falava: “Já veio a burguesa do Lula”.
Tinha um candidato a
vereador que queria dinheiro para a campanha e eu falei: “Olha, eu não vou
pedir dinheiro para a campanha. Se você quiser, eu te apresento algumas
pessoas”. Daí ele disse: “não, mas eu não quero conversar com empresário”.
Falei: “Então você quer que um favelado dê dinheiro para a tua campanha?”. Eu
já fiz campanha de cofrinho. Eu já fiz campanha de macacão em palanque. Na
campanha de 1982, a gente ia ao palanque, antes que eu falasse, fazia
propaganda das camisas, dos bótons, de tudo que a gente vendia. E a gente vendia
na hora e arrecadava o dinheiro para pagar as despesas daquele comício.
Acabou o sectarismo e acabou
a campanha militante?
Sim, esse tempo acabou, não
existe mais. hoje, uma campanha na televisão custa muito caro, as pessoas não
querem mais trabalhar por idealismo. As pessoas querem salário. Por quê? Porque
cada vereador, cada deputado tem em seu gabinete cinco, seis, dez, quinze,
vinte pessoas trabalhando. O cara do bairro fala: “Por que eu vou trabalhar de
graça? Eu também quero o meu”. Então, vai ficando tudo cada vez mais difícil e
eu diria até mais banal.
Meus três filhos mais velhos
foram criados dormindo nas calçadas de Santo André, São Bernardo, São Paulo,
São Caetano, Mauá, organizando esse partido. Era gente na rua fazendo um
carrinho de som com uma corneta, convencendo as pessoas a assistirem ao PT, e a
Marisa e outras mulheres vendendo camiseta. Elas faziam na hora as camisetas e
vendiam. Era difícil, mas era uma coisa bonita. Era uma coisa muito bonita e
muito honrosa de fazer. Isso diminuiu muito, sobretudo nos grandes centros
urbanos. E o PT tem o compromisso de tentar restabelecer um pouco dessa coisa
da política brasileira. E, diga-se de passagem, Rui Falcão tem feito um
trabalho excepcional.
Qual o papel da burocracia
na administração? Nesse sentido, tem a história da ponte da comunidade
quilombola, que o senhor tentou resolver ainda no governo Mário Covas...
Eu fui visitar em 1993 uma
comunidade quilombola [em São Paulo] e vi crianças indo de barco para a escola
num rio muito caudaloso. O Mário Covas era o governador e eu fui até ele pedir
que construísse uma ponte, uma pinguela, qualquer coisa, para que as crianças
não tivessem mais que atravessar o rio para ir à escola. Em 2003, eu assumi a
Presidência e a ponte ainda não existia. E aí eu falei: “Eu quero uma ponte”.
Então, contratamos o exército para ficar mais barato, mas ainda assim essa
ponte levou oito anos para ser construída. Agora está pronta.
A burocracia é um problema.
Primeiro, nós temos que levar em conta que a burocracia é competente na defesa
dos seus interesses. Ela pode não ser competente na defesa dos interesses de
quem está no governo, mas na defesa dos interesses da burocracia ela é
competente.
Eu fiz uma analogia que é o
seguinte: o governo é um trem. A burocracia é a estação. Então, de tempos em
tempos, vem um trem, vem outro, o do PT buzinando mais, soltando mais fumaça,
mas a estação está lá, sempre. Os burocratas estão lá. Tem o cara que vende
bilhete, o cara que assina não sei o quê, o cara que fica olhando. Eles estão
lá. O trem vai embora. Aí vem outro trem, buzina menos, faz menos barulho,
gasta menos energia. A máquina está lá. Quer dizer, a máquina não muda. O trem
muda. Toda hora passa uma máquina nova e a estação está lá.
O que faz um funcionário
público? O governante toma algumas decisões e o que acontece com um funcionário
burocrata que está lá há 25 anos? Principalmente agora, com todo esse sistema
de denúncias? O funcionário fala: “Esse cara vem dizer que eu tenho que fazer
isso? Esse cara só tem quatro anos no governo e eu já tenho 25. Se eu fizer uma
coisa errada, vou ser processado, vou ter que contratar advogado e meus bens
ficarão indisponíveis; e, quando eu for embora, ninguém nem vai se lembrar de
mim. não vou fazer coisa nenhuma. Vou deixar aí. O tempo passa logo”.
Como vencer essa barreira?
No governo, criamos uma
coisa chamada toyotismo. Era um gabinete em que colocávamos todo mundo
envolvido num determinado assunto. Vamos supor, nós íamos discutir a ponte do
rio Madeira, então, era chamado o ministro dos transportes, o ministro do Meio
Ambiente, o Iphan, a Funai, o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento,
a Advocacia Geral da união. Era chamado todo mundo que tinha alguma coisa a
ver, direta ou indiretamente, com aquela obra, para que todo mundo dissesse, na
sua área, como é que estava o andamento. Se eu chamasse só o ministro do
transporte e me colocasse de acordo com ele, quem tinha que conversar com a
Fazenda era ele sozinho. E o ministro da Fazenda dava um chá de cadeira nele de
três meses. Ele tinha que conversar com o Planejamento, ele tinha que conversar
com o Iphan, ou seja, ele tinha que fazer uma trajetória de conversar com um
por um, quando todos poderiam estar numa mesa. E a gente dava prazo: “Em quinze
dias queremos uma solução, em vinte dias queremos uma solução”. E ainda assim
as coisas demoravam... Imagina se não fizesse isso.
Sem isso, seria uma tarefa
quase impossível concluir obras?
Sim, pelo menos no mesmo
mandato. Por exemplo, eu sou presidente e discuto e decido uma coisa com um
ministro, que anunciamos para a imprensa. Aí o ministro sai do meu gabinete,
vai ter que conversar com o Guido Mantega33. Aí o Guido vai marcar audiência
quando puder. Ele conversa com o Guido, acerta tudo, mas vai ter que passar
pelo Planejamento. Aí vai ao Planejamento. “Olha, mas tem um problema no
Iphan.” Vai ter que ir ao Iphan. Depois, surge um problema no Meio Ambiente.
Ali está com um problema sério, não vai passar, tem que ir ao Ministério do
Meio Ambiente. Aí o ministério fala: “não é comigo, é com o Ibama”. Vai ao
Ibama. E quando tudo dá certo, vem a licitação, vai ao Ministério Público.
Quando tudo dá certo, uma empresa perde e entra com uma ação contra a outra. E
pronto. Passou o mandato e você não fez as coisas. é muito complicado. Hoje,
nenhum governante faz um projeto grande, licita e conclui a obra num mandato de
quatro anos. Não é possível.
Isso também coloca o desafio
de formar o quadro da gestão governamental?
A máquina pública tem
quadros excepcionais. Onde o Brasil estacionou? No
Planejamento. Não existia
uma sala de planejamento de projetos estratégicos no país.
Isso acabou no governo
Collor. Ele acabou com o Geipot, por exemplo, que tinha mais ou menos esse
formato. Foi apenas no PAC que nós colocamos dinheiro pra fazer projeto. O
Brasil tinha desmontado as empresas estatais que faziam planejamento. Fazia
vinte anos que não se fazia projeto neste país.
Também é preciso mudar a lei
de licitação. Se eu contar, parece piada. Pergunta para o então ministro da
Saúde, [José Gomes] temporão, quantos anos demorou para aprovar a compra de um
kit dentário para crianças em leilão eletrônico. Um kit bucal! Como não se pode
estabelecer num leilão referência de qualidade, aparece qualquer tipo de coisa
e qualquer um que perde entra com processo, suspende, é um negócio maluco. E
quantas canetas esferográficas que não funcionam são compradas num leilão?
Quanta coisa é comprada? Quantas empresas ganham licitação e desistem da obra
três, quatro meses depois, porque não têm fôlego para fazer? O critério não
pode ser o menor preço. A gente aprende desde que nasceu: o barato sai caro. É
preciso que se coloquem os cérebros para pensar. O Paulo Bernardo tentou fazer
uma mudança, não sei se está no Congresso. Alguma coisa tem que ser feita para
agilizar a administração pública deste país.
Então, fica mais fácil fazer
concessão. A iniciativa privada faz o que bem entende, sem 90% dos empecilhos
que tem o governo. Aí passa essa ideia que apenas na má- quina pública tem
corrupção. Vai fiscalizar a máquina da iniciativa privada para ver como é. Há
equívocos que precisam ser esclarecidos.
O senhor se frustrou por não
ter reformado o Estado?
Nós começamos o governo com
uma coisa importante, que foi a Reforma da Previdência no setor público. Muita
gente foi contra, muita gente boa até ficou contra, mas, convenhamos, mesmo na
nossa casa a gente não consegue viver, se tiver que gastar o mesmo para um
filho que está na ativa e para o outro que está inativo.
Na máquina pública, há
situações em que você tem mais aposentados do que ativos. E, ao dar um aumento
real para quem está na ativa, você é obrigado a dar o mesmo aumento real para o
inativo, quando você deveria dar reposição salarial para os aposentados e
aumento real para quem trabalha. Mas vai dizer isso...
Não é possível continuar
assim. Nós mudamos a lei, mas não é fácil. Nós tentamos fazer a Reforma
trabalhista. Criamos uma comissão de trabalho, onde estavam a CUT, a Força
Sindical e os empresários. Eles sempre chegam quase próximos a um acordo, mas
não se acertam. Eu dizia para eles: “Vocês tratem de se acertar, porque não é o
governo que vai fazer, não. ninguém precisa ganhar 100%, mas se coloquem de
acordo e construam alguma coisa”.
Eu penso que é plenamente
possível fazer mais coisas para reformar o Estado. Mas não é a reforma que a
elite brasileira quer que se faça, o tal Estado mínimo. Quem quer melhorar a
educação, precisa colocar mais professor, mais funcionário. Não tem como
melhorar a educação sem contratar, a não ser que você queira melhorar apenas
para uma pequena elite. Mas se você quiser levar a universidade para todo
mundo, levar escola técnica para todo mundo, tem que contratar mais
professores, mais funcionários. Se você quiser melhorar a saúde, tem que ter
mais médicos. Onde você vai demitir para cortar gastos, como os chamados neoliberais
querem? Se você quiser ter uma Polícia Federal mais eficiente, vai ter que
contratar mais gente. Se você quiser ter a Receita Federal mais eficaz, vai ter
que contratar. Existem postos na fronteira do Brasil que não têm gente. Eu
falava com o Guido: “Está precisando colocar gente lá”. O Guido falava: “Mas
não tem funcionário”. Então, a máquina será mais eficiente quanto mais gente
eficiente e gente para ocupar todos os postos tivermos, senão ela não vai a
lugar nenhum.
Mas faço uma ressalva: eu também
me surpreendi com a qualidade das pessoas que estão na administração pública.
Gente muito competente e que muitas vezes vai embora, porque ganha pouco. O
salário é muito pequeno. Teve um aumento agora, mas não teve aumento para o
pessoal mais qualificado. E sem eles, a máquina não funciona.
O que o senhor lamenta dessa
última década?
Se tem um cidadão que não
pode reclamar dos últimos dez anos, sou eu.