É irrelevante a afirmativa
de que a figura do impeachment está prevista na Constituição Federal
por Roberto Amaral
A quais razões terá atendido o ministro Celso
de Mello quando decidiu ingressar de mala e cuia no grupo dos colegas boquirrotos,
pronunciando-se sobre o mérito de matéria que brevemente, sabe ele e sabe todo
o mundo, deverá julgar?
Pois o ministro procurou as
câmeras de tevê do complexo golpista para, reforçando-o, declarar que o golpe
parlamentar, que atinge a presidente Dilma Rousseff na plenitude de seu
mandato, não era golpe, e por isso ganhou as manchetes que os jornais careciam
para gritar a favor do impeachment sabidamente ilegal, escandalosamente à
míngua de fundamentação constitucional: a inexistência, cobrada pelo art. 85 da
Constituição Federal, de crime de responsabilidade.
E o ministro sabe disso. Mas
o STF é servidor do formalismo (e do poder) com tal convicção religiosa que,
aos tempos da ditadura, da qual foi parceiro, não tremia em suas bases
jurídicas ao negar sistematicamente habeas corpus a perseguidos políticos,
invocando a vigência dos atos institucionais.
De todos os modos, sua
declaração deixou ainda mais exposta a participação do STF na conspiração
golpista de nossos dias. Diz o decano e alguns colegas de baixa nomeada,
antecipando voto em provável demanda no STF, que o golpe foi formalmente legal,
o que atestaria a inexistência de golpe. Um sofisma. Ora, a forma não é o
conteúdo e o golpe não está na forma, mas na sua essência.
O ministro não explica,
porém, porque o STF não julga o mérito da liminar esdrúxula de seu colega
Gilmar Mendes, que proíbe a presidente da República de nomear ministros e
igualmente não explica porque não julga o pedido de afastamento do presidente
da Câmara Federal, o réu Eduardo Cunha, peça essencial do golpe e por isso
preservada de julgamento até aqui.
Seu pedido de afastamento da
presidência da Câmara, que conspurca, foi apresentado pelo procurador-geral da
República no dia 16 de dezembro de 2015 e consta de 183 páginas e nove anexos e
seu objetivo, está lá escrito, é “proteger a Lava Jato e a dignidade do
Parlamento”.
O correntista suíço, ainda
deputado, é acusado, na mesma peça, de “destruir provas, pressionar e intimidar
vítimas” razões que têm levado muitos acusados às grades da PF em Curitiba. Mas
ele permanece livre e poderoso porque o STF não julga o pedido do procurador.
Estimam observadores que o
STF “lavou as mãos para não intervir na domesticidade do Legislativo".
Ora, esperar pela ação da Câmara, controlada pelo réu, é contribuir para a
impunidade. Não julgar, é uma forma de julgar. Toda e qualquer demora do STF
será registrada pela História como conivência, pois se sabe que há um acordo
visando a proteger Cunha: PMDB/PSDB/DEM e penduricalhos têm dívida de gratidão
com quem lhes deu o poder negado nas urnas.
O parlamentarismo e o
presidencialismo conhecem fórmulas distintas de substituição do chefe do
governo. Nos regimes de gabinete há o voto de desconfiança que destitui o
primeiro-ministro (e o gabinete) sempre que este se encontre em minoria
parlamentar. É ato tipicamente político.
No parlamentarismo, o
presidente é geralmente eleito pelo voto popular (França, Portugal, Itália, por
exemplo) e cabe-lhe simplesmente as funções de chefe de Estado e em alguns
casos o comando da política externa. Nas monarquias parlamentares (Inglaterra,
por exemplo), o “rei reina, mas não governa”. As funções de governo e de Chefe
de Estado são atribuições do primeiro-ministro, eleito pelo Parlamento,
expressão do poder popular.
No presidencialismo há
apenas duas formas de mudança do presidente, a clássica, do golpe de estado
clássico (com violência ou não) e a constitucional, via impeachment, nas
hipóteses previstas pela constituição. Quando esse se processa sem o
atendimento à prescrição constitucional, volta-se para a primeira hipótese e
para a classificação de golpe de Estado. É o caso atual.
Dilma é vítima de golpe de
Estado e é irrelevante a afirmativa de que a figura do impeachment está
prevista na Constituição Federal e é igualmente irrelevante o fato de o STF
haver disciplinado o rito de seu julgamento nas duas casas do Congresso. O que se
discute não é a forma. Mas a inaplicabilidade do remédio extremo na ausência de
crime de responsabilidade, nos termos, repito, do art. 85 da Constituição
Federal.
A acusação à presidente – na
peça vestibular, na Comissão, no Plenário da Câmara, na Comissão do Senado –
não conseguiu indicar uma só hipótese de crime de responsabilidade, e não foi
por deslize administrativo que ela está sendo punida, mas por haver perdido
maioria no Congresso e isso é uma violência inominável no leito do
presidencialismo.
Trata-se, pois, de ato
político, estritamente político-partidário, aliás revelado à saciedade nos
votos esdrúxulos do 17 de abril, um infindável desenrolar de queixas, queixumes
e mágoas ao lado de um vazio de acusações objetivas. Eis o golpe e, para essa configuração,
é irrelevante se o agente foi o Congresso ou um destacamento militar.
Os parlamentos e os
judiciários cumprem o papel que antes era atribuído às Forças Amadas, no caso
vertente animados pela coalizão formada pela mídia, o grande capital, os partidos
conservadores e o complexo Judiciário-Ministério Público-Polícia Federal.
Foi assim com Manuel Zelaya
(Honduras, 2009), cassado pelo Judiciário; com Fernando Lugo (Paraguai, 2012),
cassado pelo Congresso. Nada de novo mesmo entre nós. Esse golpismo soft, que
os alemães chamam de kalter Putsch (golpe frio) é conhecido de nossa história
política, desde o Império.
Registra-se o contragolpe de
Lott no 11 de novembro de 1955, quando o Congresso Nacional, em uma assentada,
declarou o presidente (Café Filho) e o vice-presidente (Carlos Luz) incapazes
de exercer a presidência da República, depondo-os. Golpe que posteriormente
seria sancionado pelo STF.
Foi nosso Congresso que, sem
vícios formais, implantou o parlamentarismo em 1961, um efetivo golpe contra os
poderes de João Goulart, eleito para um mandato presidencialista. Foi o
presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, que declarou vaga a
presidência da República, quando o presidente João Goulart estava em território
nacional, e assim e por isso deu posse na presidência ao deputado Ranieri
Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados.
Era a forma de dar passagem
legal ao golpe militar de 1964. Esse mesmo Congresso pouco depois elegeria o
primeiro ditador, o general Castello Branco, e a seguir todos os
generais-presidentes-ditadores previamente eleitos pelo generalato para a
chancela de um Congresso de cócoras, mas funcionando, porque de seu
funcionamento precisava a ditadura para dizer que formalmente vivíamos num
Estado formalmente constitucional!
As instituições sempre a
serviço do príncipe do momento.
O fruto do golpe contra
Dilma será um governo sem respaldo na soberania popular, mácula incurável. Um
governo derivado de um esbulho; carente, de toda e qualquer sorte de
legitimidade, à míngua de qualquer respaldo ético, pois arquitetado na traição
e operado por um deputado-réu, senhor de baraço e cutelo de um colegiado sobre
o qual pesam acusações as mais graves.
O fruto desse golpe será um
governo unilateralmente pró-mercado, pró-negócios, chefiado por um político
menor, sem respaldo popular. Seu "vice", objeto de inumeráveis
inquéritos no STF responde a processo no Conselho de Ética da Câmara.
A História terminou?
Independentemente do
desfecho imediato da crise política, permanecerá intocada a fratura exposta da
crise de legitimidade que corrói os poderes da República, e ameaça a democracia
representativa, qual a praticamos, reclamando a reorganização política do País.
O Estado de hoje não mais atende às necessidades de nosso desenvolvimento e da
complexidade que caracteriza a mudança social em andamento.
A crise política é o anúncio
de um fim de ciclo e indica, no horizonte, o novo ciclo que se está costurando
nos escaninhos insondáveis do processo histórico. Aos movimentos sociais cabe
preparar-se para uma longa e dura jornada de lutas em defesa dos direitos
trabalhistas e sociais e da soberania nacional. Afinal, o que está em jogo é o
Brasil das próximas décadas.
Roberto Aamaral é Cientista político,
ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de
Socialismo, morte e ressurreição (ed. Vozes)