Para o jurista Miguel Reali,
o direito é a soma de três dimensões: do fato,
valor e norma, para ele, toda norma bebe na fonte da sociedade e só
então se constitui em um direito. Se
direito é resultado do valor que determinada
sociedade dá a um acontecimento,
em que momento da história, se
constituiu nas sociedades, principalmente nas ocidentais, o discurso de
que as mulheres são naturalmente
propensas a atribuições não muito valorizadas,
atribuindo a elas um papel secundário e de pouca relevância no meio
social? Mais do que isso, quem tem o
poder de influenciar na construção desses valores que fazem parte do
ordenamento jurídico de um determinado povo?
A estudiosa do tema,
antropóloga Evelyn Reed, buscou responder estas questões, ao afirmar que o mito
da inferioridade da mulher é um fenômeno social, difundido e perpetuado pelo
sistema da propriedade privada, pelo Estado, Igreja e instituições familiares.
Estes foram condicionando o sexo feminino a uma posição inferior, ao construir
o discurso bem elaborado de que a natureza determinou o papel da mulher na
sociedade. Este discurso contou, na antiguidade, com o apoio de grandes
filósofos da Grécia antiga, que são referência na formação do conhecimento.
Aristóteles, por exemplo, ao analisar a mulher grega, definiu-a como um ser
inferior, ancorado nas suas observações
biológicas. Para ele, a inferioridade da mulher era visível e não faltaram
adjetivos para desqualificá-la, “é pequena, débil, frágil, tem menos dentes,
menos suturas cranianas, menos voz, etc...”.·.
Já Platão, outro grande
filósofo grego, ao analisar a condição inferior da mulher na sociedade grega,
dizia ser contraditório atribuir às mulheres os cuidados com a educação dos
filhos, uma vez que elas próprias não eram educadas, para ele, elas eram tão
capazes de governar quanto os homens, “bastando para tanto, que recebessem a
mesma formação que os homens e fossem liberadas do serviço de casa e da guarda
das crianças”. De forma enfática, o filósofo afirmava que “um Estado que não forma
e nem educa suas mulheres é como homem que treina apenas o seu braço direito.”
Na Idade Média, o pensamento
defendido por grandes filósofos, entre os quais se inclui o de Aristóteles, se
fortaleceu com o apoio da religião, que propagava o discurso da inferioridade
das mulheres. Carlos Bauer, ao estudar as mulheres ocidentais, argumenta que
inicialmente a igreja ajudou a propagar entre os fiéis a idéia de fragilidade
do sexo feminino, da sua fraqueza ante o perigo da carne, sendo elas impulsionadas
naturalmente para a fornicação, ou seja, as mulheres eram predispostas ao
pecado e era preciso controlar estes impulsos naturais. Com o passar do tempo,
já no apogeu da sociedade feudal, os valores associados à perversão foram
progressivamente substituídos pela visão da mulher dama e pura. Mudanças
significativas ocorreram nesta época, e algumas delas, naturalmente da nobreza, puderam aprender a
ler e escrever, instruindo-se na prática dos valores morais e bons costumes,
assim como, aprendiam a costurar e desenvolver outras atividades domésticas.
Com o surgimento do novo
grupo social, a burguesia, houve uma ruptura no pensamento quanto à cultura e
os valores morais da época, no entanto, isso não foi suficiente para colocar a
mulher em condições de igualdade na sociedade. No mercado de trabalho, elas
entraram pela porta dos fundos e quando remuneradas, recebiam um salário bem
inferior ao dos homens. As mulheres também dificilmente chegavam a ocupar
espaços de chefia nas corporações. No exercício de algumas profissões elas eram
censuradas a aprender ou executar as tarefas exercidas pelos homens. Uma
ocupação bastante feminina era a de parteira, que aos poucos foi desaparecendo
devido à evolução da medicina, pois, iniciou-se a formação de cirurgiões
especialistas na área.
Toda essa conjuntura atesta
as palavras da Giulia Sissa, ao afirmar em seu
artigo “Filosofia do Gênero: Platão, Aristóteles e a diferenças dos
sexos”, que “os grandes homens falavam mal das mulheres, as grandes filosofias
e os saberes mais autorizados consagravam as ideias mais falsas e mais
desdenhosas a respeito do feminino”, contundo, a autora argumenta ao analisar
os avanços da medicina, que não é prudente reduzir a ciência a uma manifestação
de machismo, isto nos impediria de “pôr
em evidência tudo o que, apesar de, mas também graças ao olhar masculino, nos
permite hoje fazer história partindo da
convicção de que a verdade está do nosso lado”.
Não se pode reduzir a luta
das mulheres a uma disputa entre os sexos, pois nossa luta não é contra os
homens, mas, contra os valores que aos poucos se consolidaram em nosso meio e
se fortaleceram no sistema patriarcal e capitalista. Apesar dos avanços, sabemos
que o pensamento que prevalece sobre o feminino é o aristotélico, e nos
perguntamos: até quando vamos continuar sendo sujeitos de direito de segunda
categoria? Até quando teremos que lutar contra essa forma de opressão? Talvez,
até que sejamos capazes de conviver com a diferença e de construir um Estado
que seja de fato democrático, em que todos efetivamente sejam iguais no direito
e nas obrigações. Caminhemos rumo ao futuro, mas não percamos de vista o
passado, pois, ele nos mostra de forma clara que a desigualdade de gênero não é
um fenômeno natural e sim uma construção cultural que há séculos oprime as
mulheres.
Autora: Gleidy Braga
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