Nesta entrevista
exclusiva a CartaCapital, o ex-presidente também fala de Copa, manifestações,
PT, mídia e campanha eleitoral. Leia a íntegra
por Luiz Gonzaga
Belluzzo, Mino Carta — publicado 03/06/2014
Antes de mais nada,
impressiona a paixão. Aos 68 anos, Luiz Inácio Lula da Silva não perdeu o vigor
com que arengava à multidão reunida no gramado da Vila Euclides no fim dos anos
70. E nos momentos em que sustenta algo capaz de empolgá-lo, ocorrência
frequente, aperta com força metalúrgica o pulso do entrevistador mais próximo,
como se pretendesse transmitir-lhe fisicamente sua emoção. Assim se deu nesta
longa entrevista que o ex-presidente Lula deu a CartaCapital. No caso de Mino,
esta foi mais uma das inúmeras, a começar pela primeira, em janeiro de 1978.
CartaCapital: O
senhor enxerga alguma relação entre a Copa do Mundo e a eleição? Se enxerga,
por que e de que maneira?
Lula: Eu acho difícil
imaginar que a Copa do Mundo possa ter qualquer efeito sobre a preferência por
este ou aquele candidato. Por outro lado, se o Brasil perder, acho que teremos
um desastre similar àquele de 1950. Temo uma frustração tremenda, e a gente não
sabe com que resultado psicológico para o povo. Em 50 jogaram o fracasso nas
costas do goleiro Barbosa.
CC: Em primeiro lugar
do Bigode.
Lula: O Barbosa
carregou por 50 anos a responsabilidade, e morreu muito pobre, com a fama de
ter sido quem derrotou o Brasil. É uma vergonha jogar a culpa num jogador. Se o
Brasil ganha, a campanha passa a debater o futuro do País e o futebol vai ficar
para especialistas como eu.
CC: E as chamadas
manifestações?
Lula: Ainda há pouco
tempo a gente não esperava que pudessem acontecer manifestações. E elas
aconteceram sem qualquer radicalização inicial, porque as pessoas reivindicavam
saúde padrão Fifa, educação padrão Fifa, poderiam ter reivindicado saúde padrão
Interlagos, quando há corrida, ou padrão de tênis, Wimbledon, na hora do tênis.
Eu acho que isso é até saudável, o povo elevou seu padrão reivindicatório. E é
plenamente aceitável dentro do processo de consolidação democrático que vive o
Brasil. Eu acho que, ao realizar a Copa, o governo assumiu o compromisso de
garantir o bem-estar e a segurança dos brasileiros e dos torcedores
estrangeiros. Quem quiser fazer passeata que faça, quem quiser levantar faixa,
que levante, mas é importante saber que, assim como alguém tem o direito de
protestar, o cidadão que comprou o ingresso e quer ir ver a Copa tenha a
garantia de assistir aos jogos em perfeita paz.
CC: O povo brasileiro
amadureceu e nós entendemos que o resultado da Copa será bem menos importante
do que foi em 1950. Mesmo que a Seleção perca, não haverá tragédia. Deste ponto
de vista. Efeitos sobre as eleições podem ocorrer em função das chamadas
manifestações.
Lula: Eu tenho
certeza de que a presidenta Dilma e os governos estaduais estão tomando toda a
responsabilidade para garantir a ordem. Com isso podemos ficar tranquilos, é
questão de honra para o governo brasileiro. O que está em jogo é também a
imagem do Brasil no exterior. De qualquer maneira, acho que não vai ter
violência, e, se houver será tão marginal a ponto de ser punida pela própria
sociedade. Agora se um sindicato quer fazer uma faixa “abaixo não sei o quê,
10% de aumento”, é seu direito. Eu me lembro que disse ao ministro José Eduardo
Cardozo, quando começou a se aventar a possibilidade de uma lei contra os
mascarados: “Olha, gente, nem brincar com lei contra mascarados porque a
primeira coisa que iremos prejudicar vai ser o Carnaval, não os mascarados”. A
Constituição e o Código Penal definem claramente o que é ordem e o que é
desordem e, portanto, o governo tem mecanismos para evitar qualquer abuso.
Recomenda-se senso comum. Nesses dias tentaram até confundir uma frase minha
sobre uma linha de metrô até os estádios. Em 1950, no Maracanã cabiam 200 mil
pessoas, mais de duas vezes as assistências atuais. É verdade, havia menos
carros nas ruas, infinitamente menos carros, mas também não havia metrô.
CC: De todo modo,
vale a pena realizar uma Copa?
Lula: Discordo
daqueles que defendem a Copa no Brasil dizendo que vão entrar 30 bilhões, ou
que geraremos novos empregos. O problema não é econômico. A Copa do Mundo vai
nos permitir, no maior evento de futebol do mundo, mostrar a cara do Brasil do
jeito que ele é. O encontro de civilizações, o resultado dessa miscigenação
extraordinária entre europeus, negros e índios que criou o povo brasileiro.
Qual é o maior patrimônio que temos para mostrar? A nossa gente.
CC: Em que medida
essas manifestações nascem do fato de que houve uma ascensão econômica? Aqueles
que melhoraram de vida reivindicam mais saúde, mais educação.
Lula: Eu acho que não
há apenas uma explicação para o que está acontecendo. Precisamos aprender a
falar com o povo, para que entenda o momento histórico. O jovem hoje com 18
anos tinha 6 anos quando ganhei a primeira eleição, 14 anos quando deixei de
ser presidente da República. Se ele tentar se informar pela televisão, ele é
analfabeto político. Se tentar se informar pela imprensa escrita, com
raríssimas exceções, ele também será um analfabeto político. A tentativa
midiática é mostrar tudo pelo negativo. Agora, se nós tivermos a capacidade de
dizer que certamente o pai dele viveu num mundo pior do que o dele, e se
começarmos a mostrar como a mudança se deu, tenho certeza de que ele vai
compreender que ainda falta muito, mas que em 12 anos passos adiante foram
dados.
CC: O governo não
soube se comunicar?
Lula: Eu acho. Eu de
vez em quando gosto de falar de problema histórico, para a gente entender o que
de fato aconteceu neste país. Já disse e repito: Cristóvão Colombo chegou em
Santo Domingo, em 1492, e em 1507 ali surgia a primeira faculdade. No Peru, em
1550, na Bolívia, em 1624. O Brasil ganhou a primeira faculdade com dom João
VI, mas a primeira universidade somente em 1930. Então você compreende o nosso
atraso. Qual é nosso orgulho? Primeiro, em 100 anos, o Brasil conseguiu chegar
a 3 milhões de estudantes em universidades. Nós, em 12 anos, vamos chegar a 7,5
milhões de estudantes, ou seja, em 12 anos, nós colocamos mais jovens na
universidade do que foi conseguido em um século. Escolas técnicas. De 1909 até
2002, foram inauguradas 140. Em 12 anos, nós inauguramos 365. Ou seja, duas
vezes e meia o número alcançado em um século. E daí você consegue imaginar o
que significa o Reuni ao elevar o número de alunos por sala de aula, de 12 para
18. Ou o que significa o Ciência Sem Fronteiras, o Fies: 18 universidades
federais novas. Pergunta o que o Fernando Henrique Cardoso fez? Se você pensar
em 146 campi novos, chegará à conclusão de que foi preciso um sem diploma na
Presidência da República para colocar a educação como prioridade neste País.
Nós triplicamos o Orçamento da União para a educação. É pouco? É tão pouco que
a presidenta Dilma já aprovou a lei permitindo 75% dos royalties para a
educação. É tão pouco que a Dilma criou o Ciência Sem Fronteira para levar 65
mil jovens a estudar no exterior. É tão pouco que ela criou o Pronatec, que já
tem 6 milhões de jovens se preparando para exercer uma profissão. Isso tudo
estimula essa juventude a querer mais. Tem de querer mais. Quanto mais ela
reivindicar, mais a gente se sente na obrigação de fazer. Quem comia acém
passou a comer contrafilé e agora quer filé. E é bom que seja assim, é bom que
as pessoas não se nivelem por baixo. Eu sempre fui contra a teoria de que é
melhor pingar do que secar. Quanto mais o povo for exigente e reivindicar,
forçará o governo a fazer mais.
O que é ruim? A
hipocrisia. Nós temos um setor médio da sociedade, que ficou esmagado entre as
conquistas sociais da parte mais pobre da população e os ricos, que ganharam
dinheiro também. A classe média, em vários setores, proporcionalmente ganhou
menos. Toda vez que um pobre ascende um degrau, quem está dez degraus acima
acha que perdeu algumas coisas. A Marilena Chauí tem uma tese que eu acho
correta: um setor da classe média brasileira que às vezes também é
progressista, do ponto de vista social, mas não aprendeu a socializar os
espaços públicos e então fica incomodado.
CC: Nós entendemos
que o problema é representado pela elite brasileira. Quem se empenha contra a
igualdade?
Lula: Eu sou o mais
crítico do comportamento da elite brasileira ao longo da história. Este país
foi o último a acabar com a escravidão, foi o último a ser independente. Só foi
ter voto da mulher na Constituição de 30. Tudo por aqui resulta de um acordo,
inclusive um acordo contra a ascensão social. Na Guerra dos Guararapes, quando
pretos e índios quiseram participar, a elite disse “não, não vai entrar, porque
depois que terminar essa guerra vão querer se voltar contra nós”. Esta é a
história política do Brasil. Ocorre, porém, que a ascensão dos pobres levou
empresas brasileiras a ganhar como nunca. Não sou eu quem lembra: em 1912, Ford
dizia: “Quero pagar um bom salário para meus trabalhadores para que eles possam
consumir”. Por exemplo: pobre em shopping dá lucro. Muitas vezes os donos não
aceitam num primeiro momento, mas depois percebem que é bom. Tínhamos 36
milhões de brasileiros viajando de avião, agora temos 112 milhões.
CC: Notáveis avanços
são inegáveis. Mas como vai ser daqui para a frente?
Lula: Eu fazia
debates mundo afora, com o Mantega, o Meirelles, às vezes a Dilma. E eu dizia:
esses ministros meus, eles falam da macroeconomia, mas o que eles não dizem é
que essa macroeconomia só deu certo por causa da minha microeconomia. O que foi
a microeconomia? Foi o aumento de salário, foi a compra de alimentos, a
agricultura familiar, foi o financiamento, foi o crédito consignado, foi o
Bolsa Família. Foi essa microeconomia que deu sustentabilidade à macroeconomia.
Na Constituição de 46, quando o trabalho era o assunto, concluía-se: “Não pode
dar 30 dias de férias para o trabalhador, porque o ócio o prejudica”. Chamavam
férias de ócio. Agora, as pessoas dizem que o Bolsa Família cria um exército de
vagabundos. E o futuro? Numa escada de dez degraus, os pobres só subiram dois,
um e meio, ainda falta muito para subir. Por isso eu tenho orgulho da
presidenta Dilma, ela sabe que muita gente vai se bater contra ela a sustentar
que, para controlar a inflação e fazer o País crescer, é preciso ter um pouco
de desemprego, arrocho no salário mínimo, ou seja, que é preciso fazer o que
sempre foi feito neste País e que não deu certo. Então, o que o governo tem de garantir
é o aumento da poupança interna, mais investimento do Estado, mais junção entre
empresa privada e pública, mais capital externo para investir no setor
produtivo. Para tanto, é indispensável dar continuidade à ascensão dos mais
pobres. Porque é isso que também vai garantir a ascensão do Brasil no mundo
desenvolvido, com alto padrão de qualidade de vida, renda per capita de 20 mil,
30 mil dólares, e até mais. O Brasil não pode parar agora. Está tudo mais
difícil, mas temos agora o que a gente não tinha há cinco anos, vamos contar
com o pré-sal, daqui a pouco.
CC: Temos um
agronegócio muito exuberante, muito produtivo e competitivo: é possível
mobilizar essa capacidade para estimular a indústria de equipamentos agrícolas?
Lula: Nós já temos
uma indústria de equipamentos agrícolas muito boa. Quando na Presidência,
cansei de discutir com empresários que feiras de agronegócio nós precisamos é
fazer na Argentina, no México, Nigéria, Angola, Índia. Temos de mostrar nossa
capacidade nos outros mercados. Esta é uma área na qual o Brasil está pronto,
não só porque tem conhecimento tecnológico, mas também porque tem capacidade de
área agriculturável, terra, sol e água. Sem a vergonha de dizer que exportamos
commodities. Hoje, a commodity tem preço. O que nós precisamos é produzir não
só o alimento, mas a indústria de alimento, não só a soja, mas o óleo de soja.
CC: Permita-nos
insistir: como vencer as resistências da elite, atiçada pela mídia?
Lula: No movimento
sindical, em 1969, e comecei a negociar com a Fiesp, certamente a elite era
muito mais retrógrada do que hoje. Eu lembro quando nós constituímos a primeira
grande comissão de fábrica na Volkswagen nos anos 80, nós fomos pedir a Antônio
Ermírio de Moraes a criação de uma comissão de fábrica na sua indústria química
de São Miguel Paulista, e significava trabalhador querendo mandar na empresa
dele. Hoje tem uma classe empresarial, mais jovem, que já compreende a
importância da negociação coletiva. Mesmo assim, permanecem setores
retrógrados. Ainda temos coronel que mata gente por esse Brasil afora por briga
de terra. Nesses dias a Nissan americana não queria deixar seu pessoal
sindicalizar-se por lá mesmo e eu tive de mandar uma carta para o presidente da
empresa. Mas voltemos à mídia.
CC: A mídia nutre
essa elite.
Lula: Eu certamente
não sou especialista nesta questão da mídia e nunca tive muita simpatia dos
seus donos. Toda vez que tentei conversar com eles, cuidei de explicar que ao
governo não interessa uma mídia chapa-branca, com foram no governo Fernando
Henrique Cardoso. Eu não quero isso, não quero que tratem o PT como trataram a
turma do Collor nos dois primeiros anos do seu mandato. Agora, também é
inaceitável a falta de respeito com Dilma. Se querem falar mal, façam-no no
editorial do jornal. Na hora da cobertura do fato, publiquem o fato como ele é.
Nunca liguei para o dono de mídia pedindo para fazer essa ou aquela matéria,
mas o respeito há de ter, tanto mais por parte da comunicação, que é concessão
do Estado. Respeito à instituição, e acho que eles saíram de um momento em que
lambiam as botas da ditadura e evoluíram para o pensamento único a favor de
FHC, e contra o meu governo e contra o da Dilma, e contra a presidenta com agressividade
ainda maior.
CC: E em termos de
informação?
Lula: Quando eu cito
os números da educação, por exemplo, é porque nunca foram divulgados por esta
mídia. É como se houvesse a obrigação de omitir, sem perceber que com isso
desrespeita o próprio público, que lê, ouve ou assiste. Nem o recente Ibope
eles divulgaram. Nem comentaram a inauguração da Rodovia Norte-Sul, que
passaram três anos criticando. Há uma predisposição do negativismo, e isso
contribui para uma desinformação da sociedade brasileira. E uma questão é
ideológica, se fosse econômica, eles deveriam ir todo dia à igreja acender uma
vela para mim, porque muitos estão quebrados e se salvaram no meu governo. Eu
estou com a alma tão leve, eu até acho normal o que eles fazem. Vem esse
metalúrgico, que a gente supunha destinado a um fracasso total, e é um sucesso.
Vem essa mulher aí, que a gente achava um poste, e ela não é um poste. E essa
mulher vai se eleger outra vez.
CC: Na verdade, o que
está esmaecendo no Brasil e no mundo é o espírito crítico.
Lula: Porque
interessa a uma parte da elite brasileira a negação da política. O que vem
depois é sempre pior, quando você nega a política. A ditadura brasileira foi a
negação da política. O que é muito grave, porque, se você atravessa um momento
sem nenhuma referência, sem ninguém em condições de controlar a situação, o
próprio Estado vai à deriva.
CC: Insistimos
novamente: o governo não se comunica?
Lula: Vocês estão
certos, não se comunica, eu tenho falado para Guido Mantega, para a Dilma:
vendo como está o mundo hoje, a cada dois meses o governo tem de fazer igual
uma empresa com seus acionistas, que têm fundos de pensão. Ou seja, você tem de
fazer viagens e convencer o fundo de que a sua empresa é rentável e vale a pena
investir. Então, a cada dois meses o governo brasileiro tem de ir a Nova York,
não para falar com aposentados brasileiros, mas com o investidor. Já falei com
o Itamaraty, com Bradesco, Santander, todos se dispõem a articular os maiores
debates brasileiros para mostrar ao mundo realizações e potencialidades. A
Petrobras tem de viajar a cada 30 dias para onde tem investidor. Não podemos
ficar por conta de um jornalista inglês que copiou matéria de um jornalista que
vive no Rio de Janeiro e fica procurando matéria em jornal para se inspirar. O
Brasil precisa reconhecer enquanto vira a sétima economia mundial com viés de
ser a quinta, que lá fora já não se fala bem da gente. José Luis Fiori escreveu
um artigo comparando Brasil e México para acabar com o complexo de vira-lata de
quem fala que o Brasil está pior que o México. O que o México tem melhor que o
Brasil? Eu quero que o México fique cada vez mais rico, mas a comparação com o
Brasil é inadequada, porque o Brasil é maior que o México em tudo. Dias atrás,
estava aqui com meu amigo Gerdau e perguntei: como está o setor siderúrgico? E
ele: não está muito bem. Perguntei: quanto é que você está ganhando no Brasil?
Somente aqui, respondeu. Perguntem para o Josué Gomes da Silva, da Coteminas,
onde ganha dinheiro? No Brasil. O mercado interno brasileiro é uma bênção de
Deus que a elite não sabia existir, eles nunca imaginaram que podíamos
ultrapassar os 35 milhões de consumidores.
CC: Que chances há de
mudar esta falha do governo?
Lula: Não é fácil, eu
sei o que foram meu primeiro e segundo mandatos. Tenho dito com a Dilma que não
tem de dar ouvidos a quem fala que gastamos muito com publicidade. Eu acho que,
se foi anunciado um programa hoje, e no segundo dia não houve repercussão, vai
em rede nacional. O governo tem de dizer o que a mídia não divulgou, porque se
não disser, o silêncio se fecha sobre o fato. Dois dias de tolerância, e coloca
um ministro em rede nacional, não precisa ir a presidenta todo dia. Mas não
fiquemos nisso. O Marco Regulatório tem de ser compreendido. Não é censura, queremos
é fazer valer a Constituição de 88, tanto mais quando entram em cena Facebook e
companhia, eu nem sei o nome de tudo. Existe Marco Regulatório de 1962. O
Franklin Martins foi feliz ao observar: “Em 62, a gente tinha mais televizinhos
do que televisores”. Eu lembro que menino ia à casa do vizinho ver televisão, a
gente só podia sentar no chão, o sofá era do dono da casa e ainda ele pisava no
dedo da gente. Para assistir luta livre, tinha de gastar dinheiro no bar, o
dono cobrava. Hoje acontece essa revolução tecnológica e você não quer discutir
sua regulamentação? Então, o Marco Regulatório e a reforma política são dois
temas de ponta que o PT tem de assumir. Temos de convocar uma Constituinte
própria para fazer uma reforma política.
CC: O que seria esta
Constituinte própria?
Lula: Não se
destinaria a elaborar uma nova Constituição, e sim discutir a reforma política,
exclusivamente. O Congresso tem de aprovar a ideia do plebiscito, e na
convocação você diz o que é. E aí, não faltam recursos jurídicos para adotar a
nomenclatura adequada. É insuportável governar com o Congresso tomado por
tantos partidos. É preciso ter critério para organizar um partido, tem de haver
cláusula de barreira.
CC: Este problema não
resulta do fato de que os partidos brasileiros nunca foram o intermediário
necessário entre a nação e o governo?
Lula: O Brasil não
tem tradição de partido nacional, a tradição são tribos locais, com caciques
regionais. Depois do PCB, o PT tornou-se o único partido nacional, cuja atuação
partidária a direção decidia. Mas o PT erra quando começa a entrar na mesmice
dos outros partidos. Erra quando usa a
mesma prática dos outros partidos. Eu não quero voltar às origens, briguei a
vida inteira para ser classe média e agora vou voltar a brigar. O PT, tem que
saber, criar esse partido não foi fácil. Lembro de alguém que vendeu uma
cabrita, que dava leite para amamentar o filho, para legalizar o PT. E até hoje
há gente que anda três, quatro dias de canoa para participar de uma convenção.
A gente não pode permitir que meia dúzia de pessoas deformem esse partido, ele
é muito grande. É um partido que o próprio povo dirige. Não é uma coisa
simples, nós temos de valorizar isso. Já disse na convenção do PT: quero ajudar
o PT a voltar ao seu leito natural. Se tem uma coisa que o PT tem de se
notabilizar, é voltar à sua tradição política. É isso que dá autoridade moral e
força para a gente.
CC: Não é fácil
manter a coerência na hora da coalisão...
Lula: Não é vergonha
você repartir administração com outros partidos, sempre que pastas sejam
definidas na base da afinidade. A reforma política é a briga que nós temos de
ter hoje. Não acho que tenha de ser da Dilma. Ela é candidata, acho que a briga
tem de ser de todo o partido. O Rui Falcão tem sido de grande valia nessa luta.
Agora vou fazer campanha pelo Nordeste, essa é a contribuição que me cabe no
momento. E, se eu fosse o governo, ficaria ouvindo todo programa de rádio, de
televisão, e o que não for verdade, pedir direito de resposta. Utilizar a
internet e não ficar chorando “a Globo não me dá espaço”. A gente tem outros
instrumentos para dizer o que quer. Estou muito disposto, física e
psicologicamente, para rodar o Brasil.
CC: A campanha,
assumir os palanques...
Lula: Assumir os
palanques. Estarei com Dilma onde ela achar conveniente estar. Preciso tomar
muito cuidado, porque haverá na base aliada interesses de que eu não vá, porque
a Dilma não pode ir, ela é candidata e da base aliada, mas eu tenho compromisso
com o meu partido. Eu sei que isso vai ser um problema, a gente vai ter de
conversar e negociar muito. Estou feliz, sabe por quê? Eu sempre achei que quem
deixa a Presidência fica pensando: como eu estarei daqui a algum tempo? Porque
as pessoas vão esquecendo, você vai perdendo importância. Eu lembro que em
2002, 2006, ninguém queria o FHC no palanque. Nem Serra colocou. Em 2010, Serra
me apresentou como amigo dele e não colocou o FHC. Então, eu me sinto feliz, eu
estou bem, eu ainda tenho consciência de que sou uma pessoa importante na
política brasileira, e como tal direi que Dilma é a pessoa mais talhada para
cuidar do Brasil.
CC: E essa história
que a imprensa criou do “Volta Lula”?
Lula: O “Volta Lula”
começou já na época que eu era presidente, quando pediam o terceiro mandato.
Eu, graças a Deus, aprendi a ter responsabilidade muito cedo. E aprendi que, ao
aceitar o terceiro mandato, por me achar insubstituível, poderia permitir que
outros também achassem, com a possibilidade de alguém, algum dia, tentar o
quarto. Não é prudente brincar com democracia. Cumpri meus dois mandatos, saí
cercado pelo carinho do povo. Se, em algum momento, tiver de voltar, posso
daqui a quatro anos. Mas não é a minha prioridade. Estarei então com 72 e acho
que tem de ser gente mais jovem, com mais vigor físico e capacidade de
administração. Mas em política a gente não pode dizer que não, nem sim. Nunca
me passou pela cabeça voltar. Em todo caso, minha relação com a Dilma é muito
forte, e de muito respeito e admiração pelo carácter dela. Bem formada
ideologicamente e muito leal. Nunca iria disputar sua candidatura.
Não faltou quem
quisesse minha volta, mas quando o Rui Falcão botou em votação, deixei claro:
“Quero que saibam, sou candidato a cabo eleitoral da companheira Dilma Rousseff
para o segundo mandato à Presidência da República”.
CC: E quanto aos
adversários?
Lula: Conheço o
Eduardo Campos, é meu amigo, gosto dele profundamente. Conheço o Aécio, ele não
tem a mesma firmeza ideológica do Eduardo, tem outro compromisso, é um
representante mais afinado com a elite. Mas a Dilma é a mais preparada. Fico
triste que não conseguimos construir algo capaz de manter o Eduardo Campos
junto da gente. Mas era destino.
CC: E a Marina?
Lula: Eu gosto muito
da Marina, como figura humana. Foi minha companheira no PT por 30 anos, tenho
por ela um carinho muito grande, mas acho que, de vez em quando, comete
equívocos na análise política dela, meio messiânica. Imaginei-a candidata, e
agora entra de vice. Nisso não consigo entender a Marina. Mas não confundo
relação de amizade com a minha decisão política. Tenho amizade com o Aécio mais
formal do que com o Eduardo e sua família.
CC: Dilma ganha no
primeiro turno?
Lula: A ganhar no
primeiro turno por 51% a 49% prefiro ganhar no segundo turno, com 65% a 35%.
Reeleição é sempre muito difícil, mas no segundo turno você pode consolidar um
processo de alianças com a coalisão e você é eleito com mais desenvoltura, e
também permite fazer um debate mais profundo. No primeiro turno todo mundo fala
a mesma coisa, promete tudo para o povo. Eu acho que a Dilma está tranquila. Se
em 2002 a esperança venceu o medo, acho que agora a esperança e a certeza do
que pode ser feito pode vencer o ódio.
CC: A campanha será
sangrenta?
Lula: Pelas
características dos candidatos, acho que não. De resto, o resultado de uma
campanha não define apenas vencedor e derrotados, é o grau de politização da
sociedade, é o gosto pela política, é perceber que durante a campanha os
candidatos aprenderam alguma coisa e deram um salto de qualidade. Quando
disputei com o Serra, nós tivemos uma campanha mais civilizada do que com o
Alckmin. Ele se apresenta como cidadão refinado, mas foi de extrema
agressividade.
CC: Qual seria o
adversário mais provável para o segundo turno?
Lula: Eu acho que, em
um segundo turno, será tucano. O PSDB tem base partidária mais organizada,
governam São Paulo, Paraná, alguns estados importantes no Nordeste, e tem mais
tradição de palanque. Já o PSB tem pouco palanque estadual, a campanha do
Eduardo vai ser mais difícil do que em 1989.
CC: E o Padilha,
candidato petista em São Paulo?
Lula: O Padilha é um
daqueles fenômenos. Eu disse outro dia em Sorocaba ao Padilha: “Depois de quem
o precedeu, Arruda Sampaio, Suplicy, Dirceu, Marta, Genoino, Mercadante, você é
o melhor candidato de todos nós, o mais alegre, o mais simpático, sua
capacidade de comunicação com o povo é fantástica, unificou o partido”. Mas é
uma campanha difícil. Primeiro, porque os tucanos têm uma base sólida em São
Paulo, e há conservadorismo no estado e isso dá quase que uma garantia. Não sei
se Paulo Skaff vai ser candidato, faz dois anos que faz campanha não como
candidato, mas como presidente da Fiesp. Agora o desafio para o PT é ter os
votos que o partido tem habitualmente na cidade, todas as eleições.
CC: Fale da central
de boatos a respeito do seu filho Fábio.
Lula: Ao mesmo tempo
que sou defensor intransigente da liberdade que temos na internet, acho que
somos vítimas dessa liberdade, porque o cidadão entra no seu quarto, seu
escritório, e fala a besteira que quiser. Há muito tempo vêm denúncias, outro
dia mostraram a sede da Esalq e disseram que era a casa do meu filho, outro dia
ele era dono da Friboi, um dia desses ele foi à Itaipu com o Samec passear, daí
um jornal disse que ele estava fazendo negócios, inventaram que ele tem um
jato. Conseguimos detectar o paradeiro de dez pessoas, uma era do Instituto
Fernando Henrique Cardoso, filho do ex-ministro Graziano. Os envolvidos foram
acionados, um veio prestar depoimento, disse: “Mas eu sou eleitor do Lula, eu
só citei, não sabia se era verdade, mas coloquei”. Muitos pedem desculpas. O
Graziano veio aqui também. Quando, muito tempo atrás, eu fui contra a invasão
do Afeganistão pela então URSS, diziam que eu era da CIA, depois eu era visto
pela direita como o cara do Partidão. Isso me permitiu continuar percorrendo o
caminho do meio. Mas vale acentuar que
nós chegamos à excrescência da excrescência do comportamento humano. Um dia
desses eu vejo O Que Eu Sei do Lula, um livro. O autor não conviveu comigo um
único segundo para escrever a orelha do livro. Fico pensando o que faço com um
cidadão desse? Acabo percebendo que o melhor é a desmoralização pela mentira. O
Romeu Tuma Jr. não merece o comportamento do pai dele. O pai dele foi um
cidadão digno. Quando a minha mãe estava para morrer, ele, meu carcereiro, me
deixava sair da cadeia às 2 da manhã para visitá-la. Então, quando um cidadão
conta uma mentira dessa, o que fazer? Processar? Acho que falta um pouco de
senso de responsabilidade no comportamento das pessoas. De verdade, falta
reconstruir a estrutura social da família. Quando eu era pequeno, tinha vontade
de comer uma maçã embrulhada em papel azul, e ficava diante da barraca olhando
e olhando, e sabe por que eu não pegava e não saía correndo? Para não
envergonhar a minha mãe. Ela era a minha referência de comportamento.
CC: Mas uma política
social que conseguisse alcançar certo grau de igualdade, isso não recriaria
automaticamente valores perdidos?
Lula: Há todo um
conjunto de fatores viáveis, não concordo com você diminuir a idade penal e
colocar mais polícia na rua para coibir a violência. Isso não vai funcionar. Eu
acho que, se houver mais gente na escola e mais gente trabalhando, vamos
caminhar no rumo certo.
CC: Seria correto
dizer que há uma concepção errada da polícia num Estado democrático. Trata-se
de uma instituição absolutamente necessária, mas muito maltratada, porque ela
não é para reprimir, é para prevenir. Será que não vivemos uma crise institucional
dos poderes que haveriam de constituir um Estado moderno?
Lula: Quando a gente
fala em reforma, precisamos reformar também o Poder Judiciário. É tudo muito
lento. Mas a Justiça pede por uma reforma, porque é justo exigir mais
competência, é preciso ter mais estrutura para chegar a um cargo na Justiça.
Quanto à polícia, tenho uma observação. A nossa polícia sabe que em muitos
casos o crime organizado está mais preparado do que ela. Todo ser humano tem
medo. Há casos em que o policial tira a farda para ninguém saber que ele é
policial. Ele vai trabalhar com um pouco de medo, e o medo faz você mais
violento. Se você aborda o suspeito, já de revólver em punho, caso este reaja,
você puxa o gatilho. Como é que você resolve isso? Nós cometemos um erro na
Constituição, que foi dar muita autonomia aos estados para que sua polícia se
desvincule com muita autonomia da PM. Dá a impressão de que os estados saberiam
lidar com a criminalidade, mas na prática muitos estados ficam reféns da
própria polícia. Primeiro, seria preciso que os policiais se formassem por
cursos de inteligência, assim como se formam em tiro ao alvo e arte marcial.
Segundo, é preciso pagar melhor. Acho que, no caso da organização da polícia, o
problema está na Constituição de 88. Nas Forças Armadas, nós liberamos 7 mil, 8
mil fardados por ano, que poderiam ser chamados diretamente para a polícia. Mas
não, têm de prestar concurso. É preciso rediscutir a respeito. Sem deixar de
partir do pressuposto de que nenhum governador quer abrir mão do controle da
polícia. Decisivo seria definir o papel de cada um. Porque, quando um
governador prende um bandido, ele gosta de aparecer na televisão, mas, quando
ele não prende, o governo federal é o culpado. Essa ponderação explica-se a
outros campos. A educação. Quem é que cuida? O governo federal, estadual ou
prefeitura? E no ensino técnico? Saúde? Nós precisamos definir tudo isso. Temos
de repactuar os entes federados. Construir um pacto federativo, não só a partir
da discussão financeira, mas também de acordo com a responsabilidade de cada
um. Penso que no segundo mandato a Dilma terá de fazer coisas novas, é
importante promover debates que ainda não foram feitos. Só se fala em política
tributária, e ninguém quer política tributária. Eu tentei implementar duas
vezes, ninguém quis. Dilma tem de fazer um esforço muito grande para destravar
este país.
CC: Até que ponto o
senhor pode influenciar Dilma na escolha dos futuros ministros?
Lula: Eu não quero
influenciar a Dilma. Faço política por uma transferência de confiança. Eu
confio na Dilma. Se for eleita, vai fazer suas escolhas, vou torcer para dar
certo. Se achar que ela está errada, vou dar uns palpites. Se em algum momento
ela resolver discutir comigo alguns nomes, eu também não terei dúvidas em ajudá-la.
CC: Digamos que a
presidenta não queira ouvir ninguém, quem quer que seja.
Lula: Não existe
isso.
CC: Admitamos uma
sugestão não solicitada: “Este cara é muito bom”.
Lula: Vamos supor que
a Dilma seja eleita e eu resolva indicar o Belluzzo. E ela falasse “não”. O que
iria acontecer? Ia ficar um arranhãozinho na nossa relação de amizade. Daí eu
preferir não indicar. É mais saudável, nem eu nem ela teremos decepções. Agora,
se o partido vier discutir comigo quais nomes vai indicar, eu direi o que acho
a respeito. Com ela, não. A não ser que a escolha me pareça absurda e então não
hesitarei: “Este é problema”.
CC: Como analisar o
avanço na relação dos BRICS?
Lula: Nesse mundo
globalizado a gente tem de procurar parceiros. Acabou o tempo em que o mundo
pobre esperava tudo da Europa e dos Estados Unidos. Então, eu penso que o
Brasil tem de fortalecer as suas relações. Eu sou da tese de que a gente tem de
criar um colchão de proteção do Brasil em suas relações externas, do ponto de
vista estratégico, do ponto de vista da segurança, econômico, do ponto de vista
estratégico do desenvolvimento científico-tecnológico. Porque quem já tem não
quer repartir com a gente.
Por isso o Brasil há
de fortalecer cada vez mais sua participação, sobretudo na América do Sul. E
ter aqui, na América do Sul, algo muito forte na área do comércio e da
interação das nossas empresas. Ter empresas fortes e bancos de desenvolvimento
fortes. O BNDES tem de arcar com um papel mais importante e a gente tem de
construir o Banco Sul. Acho que temos de fazer o mesmo com a África, porque
agora, no século XXI, a África dará um salto de qualidade.
E com os BRICS,
precisamos tomar decisões políticas. Nós somos uma espécie de pêndulo do
planeta Terra, então não podemos ficar dependendo do dólar para fazer negócio.
Temos de construir, e não esperar que o mundo construído no século XIX, no
começo do século XX, venha nos salvar. Nós podemos fazer a diferença. Eu acho
que esse acordo da Rússia com a China, esse negócio do gás, foi um tapa com
luva de pelica na cara da Aliança do Atlântico. Acho que os BRICS devem
funcionar como uma espécie de segurança na relação de cinco economias
importantes. Por que eu falo isso? O Mercosul, quando cheguei à Presidência,
não valia nada. A Alca é que estava na moda. Nós não implantamos a Alca e o
Mercosul passou de 10 bilhões para 49 bilhões de fluxo de comércio exterior. A
América do Sul não valia nada, o Brasil não conversava com ninguém, ninguém
conversava com o Brasil.
CC: Não é do
interesse da elite que esses dados apareçam.
Lula: O Brasil é o
primeiro produtor, e primeiro exportador, de carne processada, suco de laranja,
tabaco, o segundo de soja. Tudo que você imaginar, o Brasil está entre os cinco
do mundo. Vamos gostar deste País!
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